Carta 37 publicada a 18 março 2013

25 ANOS ANTES DA SUA PROMULGAÇÃO, O MOTU PROPRIO ERA JÁ ANUNCIADO POR MONS. LEFEBVRE E PELO CARD. RATZINGER


A reforma litúrgica de Paulo VI, promulgada em 1969, foi algo sem precedentes em toda a história da Igreja, tanto pelo conteúdo das inovações que trazia como pela margem que dava à iniciativa pessoal do celebrante. Imediatamente após a promulgação, ela logo suscitou reticências e resistências, seja nas mais altas esferas da Igreja — o “Breve Exame Crítico” dos Cardeais Ottaviani e Bacci, por exemplo, foi transmitido a Paulo VI poucas semanas antes da entrada em vigor do novo missal — como entre os simples féis. Provocou também a reação de numerosas personalidades do mundo das artes, das letras e das ciências, que no famoso apelo publicado no Times a 6 de Julho de 1971 e que esteve na origem do indulto “Agatha Christie”, quiseram mostrar a sua inquietação perante a regressão cultural que uma tal reforma representava.

Com efeito, à morte de Paulo VI, isto é, menos de dez anos depois, era já claro — inclusivamente para os seus promotores — que esta reforma não tinha conseguido cumprir os seus objetivos e começava até a esvaziar as igrejas.

Com o dealbar dos anos 80, assiste-se então a uma crescente manifestação de bom senso, cada vez mais clara: porque não deixar as antigas formas litúrgicas na disposição de quantos nelas encontravam o seu alimento sacramental e espiritual? Pois se agora tudo parecia ser permitido e livre, porque não também permitir livremente que se continuasse a fazer o que se fazia antes? Não tinha o próprio Paulo VI dado um sinal claro quando, antes de morrer, enviara para Teerão Mons. Annibale Bugnini, ele que era o autor da reforma? Não tinha o Papa compreendido que a missa que para sempre haveria de levar o seu nome, desejada como uma manifestação radiosa da “primavera” conciliar, se estava afinal a revelar como um novo fermento de divisão no seio de uma Igreja já em processo de enfraquecimento?

Foi assim que logo desde o início do pontificado de João Paulo II, em 1978, a questão da liberdade da missa pré-conciliar acabou por vir à superfície. Ainda que tenham sido precisos trinta anos para que chegasse a encontrar a sua resposta definitiva no motu proprio Summorum Pontificum de Bento XVI, na verdade esta resposta fora já anunciada por duas personagens que ficarão na história — quer se queira quer não, e quaisquer que possam ser as apreciações que se façam ora sobre um ora sobre o outro — e que foram figuras chave para a resolução da fratura litúrgica: Joseph Ratzinger e Marcel Lefebvre.


I – MONS. LEFEBVRE: A “PROFECIA” EM 1979 SOBRE A LIBERDADE DA MISSA



A 11 de Maio de 1979, diante dos seminaristas de Écône, Mons. Lefebvre declarava:
«Se realmente o Papa voltar a fazer jus à missa tradicional no seio da Igreja, então posso dizer-vos que, nesse caso, creio que teremos assegurado o essencial da nossa vitória. No dia em que a missa voltar realmente a ser a missa da Igreja, a missa das paróquias, a missa das igrejas — oh, por certo, vai haver ainda dificuldades, vai haver ainda disputas, vai haver oposições, vai haver tudo o mais que se possa imaginar —, mas, por fim, a missa de sempre, a missa que é o coração da Igreja, a missa que é o essencial da Igreja, esta mesma missa retomará o seu lugar, um lugar que talvez ainda não será suficiente, pois que é evidente que cumpriria dar-lhe um ainda maior, mas ainda assim, só o facto de que todos os sacerdotes que o desejem venham a poder dizer esta missa, tenho para mim que isso haveria de ter consequências grandiosas na Igreja.

Creio que teríamos servido para fazer chegar esse momento, se de facto ele chegasse…pois creio que então estaria salva a Tradição. No dia em que consigamos salvar a missa, a Tradição da Igreja está salva, porque com a missa vêm os sacramentos, com a missa vem o Credo, com a missa vem o catecismo, com a missa vem a Bíblia e tudo, tudo o mais… que mais vos posso dizer, seriam os próprios seminários e a própria Tradição que estariam salvos. Creio que quase poderíamos dizer que se assistiria de novo a uma aurora no seio da Igreja, e depois de termos atravessado um tempestade medonha, depois de nos termos visto imersos na obscuridade completa, sacudidos por todos os ventos e por todos os tornados, apesar disso, no horizonte manifestar-se-ia, por fim, a missa, a missa que é o sol da Igreja, o sol da nossa vida, o sol da vida do cristão
»…
(fonte: site Credidimus Caritati)

«Só o facto de que todos os sacerdotes que o desejem venham a poder dizer esta missa, tenho para mim que isso haveria de ter consequências grandiosas na Igreja»: não é isso mesmo que veio fazer o motu proprio de 2007? A Fraternidade de São Pio X regozijou-se largamente pela boca de Mons. Fellay diante deste texto libertador. E era justo, uma vez que o seu fundador o tinha já anunciado como um “aurora da Igreja”»!


II – O CARDEAL RATZINGER: O PRINCÍPIO DA LIBERDADE DA MISSA AFIRMADO EM 1982



No início do pontificado wojtyliano, esta liberdade litúrgica era uma ideia que pairava no ar. Sabemos hoje que logo após ter sido nomeado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé — e incumbido oficiosamente pelo Papa João Paulo II de todo o dossier relativo à contestação litúrgica —, no dia 16 de Novembro de 1982, o Cardeal Joseph Ratzinger organizou no palácio do Santo Ofício uma reunião «sobre as quesões litúrgicas» (1), isto é, para tratar tanto do problema litúrgico em si mesmo como do problema da Fraternidade São Pio X.

1982. Estávamos então exactamente um quarto de século antes do Summorum Pontificum. Durante a dita reunião, o Cardeal Ratzinger tinha conseguido que todos os participantes, sem exceção (2), afirmassem como uma evidência de bom senso que «independentemente da “questão Lefebvre”, o missal romano, na forma usada até 1969, deve ser admitido pela Santa Sé em todo a Igreja para as missas celebradas em língua latina».

Os prelados presentes tinham também falado sobre a questão adjacente à questão litúrgica, isto é, a questão da Fraternidade de São Pio X, tendo considerado que a solução desta deveria começar por uma visita canónica (que, de facto, veio a ter lugar cinco anos mais tarde).


III – A ALIANÇA OBJETIVA LEFEBVRE/RATZINGER PARA O AVANÇO DA LIBERDADE LITÚRGICA

As etapas deste processo de liberação da liturgia não reformada, processo tão inaudito quanto o fora a própria reforma de Bugnini, foi marcando o quarto de século que se seguiu a esta tomada de posição pelo Cardeal Ratzinger. No plano dos factos, este processo viria a revelar-se intimamente ligado à regulamentação canónica das questões respeitantes à Fraternidade de São Pio X, ainda que, oficialmente, todos queiram pensar que se tratava de dois distintos dossiers.

a) A 1 de Março de 1984, o Cardeal Casaroli, Secretário de Estado, escreve (a pedido do Cardeal Ratzinger) ao Cardeal Casoria, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, a fim de lhe pedir que preparasse o primeiro acto da restauração do uso do missal tradicional: «Uma interdição absoluta do uso do missal supracitado não é justificável nem do ponto de vista teológico nem do ponto de vista jurídico.» A 3 de Outubro de 1984, o sucessor do Cardeal Casoria no Culto Divino, Mons. Mayer, envia aos presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo a carta circular Quattuor abhinc annos, também dita “indulto de 1984”, que autoriza a celebração de acordo com o missal de 1962 para grupos que o peçam.

b) A 30 de Outubro de 1987, último dia da assembleia do Sínodo sobre “A vocação e a missão dos leigos na sociedade e na Igreja”, o Cardeal Ratzinger anuncia aos bispos que será nomeado um Visitador Apostólico para a obra de Marcel Lefebvre: o cardeal canadiano Édouard Gagnon, presidente do Conselho para a Família. Depois desta visita, realizada em Abril de 1988, desenrolam-se as negociações entre o Cardeal Ratzinger e Mons. Lefebvre que levam a um acordo a 5 de Maio, mas que seria depois denunciado por Mons. Lefebvre — essencialmente, por causa da falta de garantias a respeito da nomeação e da data de ordenação de quatro bispos, em Écône, a 30 de Junho de 1988.

Como reação a este acto, Roma publica o motu proprio “Ecclesia Dei”, a de 2 de Julho de 1988, o qual, condenando embora Mons. Lefebvre, vem instituir uma Comissão Pontifícia para “facilitar a plena comunhão eclesial” dos sacerdotes e religiosos ligados ao missal de 1962 e para supervisionar a aplicação do indulto de 1984 por parte dos bispos.

c) Em Janeiro de 2002, o acordo falhado de 1988 entre Mons. Lefevre e Roma acaba por vir beneficiar D. Licinio Rangel, sucessor de D. Antônio Castro Mayer à frente da comunidade tradicional da diocese de Campos. Cria-se então um ordinariato pessoal e, em Junho do mesmo ano, Roma aceita que se designe um coadjutor para suceder automaticamente a D. Licínio. Uma comunidade de mais de 20.000 fiéis e com um vintena de sacerdotes regressava assim à plena comunhão com Roma, conservando porém todos os seus usos litúrgicos ante-conciliares.

d) A coroação de todo este processo vem a acontecer a 7 de Julho de 2007, quando o Papa BentoXVI promulga o motu proprio Summorum Pontificum, que veio restituir a todos os sacerdotes a possibilidade de usarem privadamente o missal de 1962 e convida os párocos a responderem favoravelmente aos grupos estáveis de fiéis que dele também desejem beneficiar.

Saudado pelo superior da Fraternidade São Pio X, este texto, que tem valor de “lei universal da Igreja” (como o diz a Instrução Universae Ecclesiae), veio favorecer os contactos entre Roma e Écône e levou a que em Janeiro de 2009 fossem levantadas as excomunhões dos bispos consagrados em 1988.


IV – LIBERDADE LITÚRGICA/ LIBERDADE TEOLÓGICA: O DISCURSO DE JULHO DE 1988 DE JOSEPH RATZINGER SOBRE MONS. LEFEBVRE

Na nossa carta francesa de 4 de Junho de 2010 (carta PL 233), dedicada ao livro de Mons. Brunero Gherardini, “O Concílio Ecuménico Vaticano II, um debate a fazer”, evocávamos um discurso de grande importância pronunciado pelo Cardeal Ratzinger a 13 de Julho de 1988 diante dos bispos do Chile e da Colômbia (3). Nesta alocução, o futuro Papa examinava as responsabilidades que impendiam sobre cada um, depois de Mons. Lefebvre ter realizado as ordenações episcopais em Écône, a 30 de Junho de 1988.

Pois neste discurso encontram-se duas afirmações fundamentais para a compreensão do pontificado que agora findou:

a) «A verdade é que o Concílio em si mesmo não definiu qualquer dogma. De maneira consciente, quis exprimir-se num registo mais modesto, como um concílio simplesmente pastoral; no entanto, muitos há que o interpretam como se ele fosse um “super-dogma” que a tudo o mais tira toda a importância.»

b) «Defender a validade e o caráter obrigatório do Concílio Vaticano II, contra Mons. Lefebvre, é e continuará a ser uma necssidade.»

Daí uma dificuldade hoje ainda não resolvida e que pesou nas recentes conversações entre a Fraternidade São Pio X e Roma: que «caráter obrigatório» podem ter para a fé ensinamentos expressos «num registo mais modesto» do que o do Credo?

O paralelo poderá chocar alguém, mas porque não aplicar ao Concílio o que o Santo Padre aplicou à liturgia? Para relativizar o caráter de “super-liturgia” da nova missa, o Papa, com o Summorum Pontificum, na realidade, veio lembrar que a antiga missa jamais havia sido interdita e tornou livre o seu uso (pelo menos, em teoria) tanto para os sacerdotes como para os fiéis.


V – AS REFLEXÕES DA PAIX LITURGIQUE

1:: A declaração feita a 11 de Maio de 1979 por Mons. Lefebvre é surpreendente não apenas por causa da data, mas também por iluminar no prelado de Écône uma faceta diferente da que é costume apontar-se-lhe. Nestas declarações de 1979, nada se vê de violentamente polémico nem de rígido, e menos ainda de “sectário”. Elas exprimem uma esperança que diz respeito à vida concreta da Igreja. Vemos aí o “Lefebvre pastoral”, no sentido que à palavra se veio a dar desde o Concílio, mas ainda assim com outro conteúdo: o de um ecumenismo intra-eclesial que faz a experiência concreta da liberdade da missa tradicional nas paróquias com o fito de favorecer com isso uma renovação litúrgica, espiritual e doutrinal.

O fundador da Fraternidade São Pio X dá aí testemunho da sua esperança de ver a missa tradicional tornar-se em liberdade «a missa das paróquias, a missa das igrejas». Naturalmente, admite também que vai haver «ainda dificuldades, vai haver ainda disputas, vai haver oposições, vai haver tudo o mais que se possa imaginar». Mas centra-se no essencial, e diz, de modo muito concreto: «esta mesma missa retomará o seu lugar, um lugar que talvez ainda não será suficiente». E assim, dá à sua obra uma finalidade que ganha ainda mais força ao aparentar ser modesta: «só o facto de que todos os sacerdotes que o desejem venham a poder dizer esta missa, tenho para mim que isso haveria de ter consequências grandiosas na Igreja. Creio que teríamos servido para fazer chegar esse momento, se de facto ele chegasse.» E Mons. Lefebvre desenvolve ainda o tema a coerência liturgia/doutrina: «No dia em que consigamos salvar a missa, a Tradição da Igreja está salva, porque com a missa vêm os sacramentos, com a missa vem o Credo, com a missa vem o catecismo, com a missa vem a Bíblia e tudo, tudo o mais…».

2:: Quanto ao processo de liberdade que o Cardeal Ratzinger tinha começado em 1982, é ele também igualmente pastoral e concreto. Como para o dogma – mas aqui a propósito da liberalização da prática da missa que hoje se usa chamar de extraordinária – podemos falar d’ «uma evolução homogénea»:

– circular Quattuor abhinc annos, de 3 de Outubro de 1984: a missa tradicional pode ser autorizada pelos bispos, mas com condições e não nas igrejas paroquiais;

– motu proprio Ecclesia Dei Adflicta, de 2 de Julho de 1988: convida-se os bispos a que a permitam de maneira (em princípio) larga e generosa nas suas dioceses;

– ereção da Administração Apostólica pessoal São João Maria Vianney em Campos, em Janeiro de 2002: a missa em forma extraordinária como fonte única da vida eucarística de uma comunidade de grande dimensão;

– motu proprio Summorum Pontificum, de 7 de Julho de 2007: a decisão passa (em princípio) para os párocos, nas respectivas paróquias; sobretudo, declara-se jamais ter sido esta missa abolida e a sua celebração privada passa a ser um direito para todo o sacerdote de rito romano, sem qualquer restrição;

– logicamente, um último texto que venha a aparecer não poderá senão vir constatar a liberdade pura e simples; uma liberdade “normal”, para usar as palavras do Cardeal Cañizares, de celebrar a missa extraordinária em todas as igrejas. A «missa de sempre» tornar-se-ia então, para o rito romano, a «missa de todos os lugares».

3:: A dificuldade que será preciso ultrapassar, se quisermos chegar a esta última etapa, está no facto de que passámos do não-dogma do Vaticano II a um “super-dogma”, o que também se estende à liturgia do Vaticano II. Passou-se de um concílio não infalível, que não convoca a fé, a um pretenso «espírito do Concílio tirânico, o qual pretende também dogmatizar as novas formas do culto divino. No fundo, o que cumpre defender é uma sã liberdade, uma verdadeira liberdade teológica, não para contestar o dogma católico, mas para o explicar, para o defender e até mesmo para o fazer "progredir" – para fazer progredir a sua recta compreensão.

Esta liberdade está fortemente imbricada numa sã liberdade jurídica, não já a liberdade de todos os abusos, mas uma liberdade para ilustrar, defender e fazer progredir a fé dos fiéis na transubstanciação eucarística, no sacrifício propiciatório que é renovado na celebração da missa, no sacerdócio sacramental e hierárquico instituído por Jesus Cristo.

Não é paradoxal que nos dias de hoje tudo se permita, à exceção de uma única liberdade, que é travada, a liberdade de quem quer trilhar os caminhos, liberdade que è refutada por quantos têm ainda entre mãos as rédeas do poder, ou uma liberdade a tal ponto “enquadrada” por eles que, na realidade, acaba por ser aniquilada, e isso em nome do "espírito" de um Concílio que foi visto, e que se vê, como um concílio "libertador"?

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(1) «Nel 1982 neanche l’alleanza Ratzinger-Casaroli riuscì a sdoganare la Messa tridentina», Il Foglio, 19 mars 2006.

(2) Além dele mesmo, Prefeito da Congregação para a Dourina da Fé: os cardeais Sebastiano Baggio, Prefeito da Congregação para os Bispos; William W. Baum, arcebispo de Washington; Agostino Casaroli, Secretário de Estado; Silvio Oddi, prefeito da Congregação para o Clero; e Mons. Giuseppe Casoria, então pró-Prefeito da Congregação para Culto e para os Sacramentos.

(3) Mons. Müller, novo Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, desde que se tornou bispo de Ratisbona, começou a levar a cabo a publicação das obras completas de Joseph Ratzinger em 16 volumes. Nos volumes até agora publicados, não se encontra sinal deste discurso de 13 de Julho de 1988, ainda que o mesmo pudesse ter lugar adequado no tomo 7 relativo aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, às suas formulações e interpretação, ou ainda no tomo 11, sobre a teologia e a liturgia. Continua…

(4) Padre Claude Barthe, «Rome/Fraternité Saint-Pie X: Où en sommes-nous?», L’Homme nouveau, 5 de Janeiro de 2013.