Carta 57 publicada a 8 fevereiro 2015

“Quem gosta da forma extraordinária deve poder ter acesso a ela”, Cardeal Zen

Na nossa carta francesa n° 174, de Abril de 2009, detivemo-nos sobre a opção feita pelo Cardeal Joseph Zen Ze-Kiun, S.D.B., então bispo de Hong-Kong, de celebrar a sua última Missa Pontifical na forma extraordinária do rito romano. Por essa altura, o cardeal declarara que era seu desejo poder consagrar uma parte do seu tempo como prelado emérito aos fiéis ligados à liturgia tradicional da Igreja.

Cinco anos mais tarde, o Cardeal Zen continua a manter a sua palavra, dedicando-se a acompanhar a vida espiritual e sacramental da comunidade tradicional da ex-colónia britânica. Aí, celebrou por diversas vezes segundo o Missal de São João XXIII, dispensou o sacramento da confirmação, fez conferências, assistiu à ordenação diaconal de um dos seus membros, etc.

A finais de 2014, por ocasião de uma conferência sobre as missões na Ásia, na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, o tradutor da nossa carta em versão alemã pôde conversar por alguns instantes com Sua Eminência, aproveitando para lhe dirigir algumas questões. Pelas suas respostas amáveis e claras, estamos-lhe, pois, muitíssimo gratos.





I – ENTREVISTA COM O CARDEAL JOSEPH ZEN ZE-KIUN

1) Que lugar tem a liturgia na vida de Vossa Eminência?

Cardeal Zen: É o momento mais importante do meu dia. Eu sou religioso [salesiano, NDR] e, enquanto tal, dou grande valor à nossa oração comunitária. A nossa comunidade dispõe, além disso, de belas instalações para a liturgia.

2) Vossa Eminência foi um dos primeiros sacerdotes chineses a celebrar o Novus Ordo, como sinal de unidade com Roma. Desde então, o Papa Bento XVI permitiu que a missa tradicional se celebrasse novamente, o que Vossa Eminência fez com grande agrado, nomeadamente em Hong-Kong…

Cardeal Zen: Pessoalmente, vi com muito bons olhos a direcção indicada pelo Papa Bento XVI, agora emérito. Teve toda a razão em dizer que a missa tradicional jamais havia sido abolida. E se os fiéis a acham mais propícia para alimentar a sua devoção, devemos dar-lhes a possibilidade de a ela terem acesso. Coube-me introduzir entre os seminaristas chineses a missa do pós-concílio [de 1989 a 1996, o Cardeal Zen ensinou nos Seminários chineses, que até então estavam vedados aos sacerdotes romanos, NDR], e poder fazê-lo foi uma felicidade. Mas já nessa altura, lhes lembrava que não havia qualquer mal em celebrar a liturgia antiga. A nossa fé, a nossa vocação, os nossos santos, tudo nos vem dessa liturgia, dessa maneira de rezar.

3) Tem apreço pelo latim?

Cardeal Zen: Muito. Estimo muito os cânticos gregorianos e sei vários de cor. Recito-os durante as minhas orações privadas e acho-os admiráveis! Gostaria de ver mais vezes a forma ordinária celebrada em latim, como o desejava o concílio.

4) Na Europa, os opositores das missa tradicional dizem que ela só é querida por um pequeno número de pessoas: que comentário lhe merece essa observação?

Cardeal Zen: Não vejo onde esteja o problema. Também em Hong-Kong, há um pequeno grupo. Quem gosta da forma extraordinária deve poder ter acesso a ela. É um direito que lhes assiste. Não é preciso obrigar os fiéis a agruparem-se de modo artificial: é suficiente um pequeno grupo.

5) E a forma extraordinária não ameaça a unidade da Igreja?

Cardeal Zen: Não, de todo. Por que motivo o deveria fazer? Na Igreja, há muitas liturgias, nomeadamente as das igrejas do Oriente. A diversidade dos ritos não é um problema.

6) Tem alguma mensagem que quisesse deixar aos fiéis ligados à forma extraordinária?

Cardeal Zen: Sim, tenho: que é absolutamente evidente que a missa tradicional continuará a ser importante no futuro. As pessoas que a desejam devem poder assistir a esta missa, desde que, bem entendido, não se levantem contra a missa nova. Em Hong-Kong, as pessoas que participam da missa tradicional vão também à missa moderna, e nada têm contra ela. Como todos os fiéis em todo o mundo, os chineses tiram grandes benefícios da tradição da Igreja.


II – AS REFLEXÕES DA PAIX LITURGIQUE

1) Lembremos que, desde a vitória de Mao, a Igreja está presente na China de duas maneiras: de maneira oficial, através de uma associação patriótica controlada pelo poder político; e de uma maneira clandestina, através de uma igreja mártir fiel a Roma. Este estranho estado de coisas levou a que, até à abertura permitida por Deng Xiaoping, o catolicismo reconhecido pelo Estado tivesse ignorado por completo o Concílio Vaticano II e, por isso, a liturgia moderna. Foi no quadro dessa abertura que, a finais dos anos 80, o Cardeal Zen acabou por poder ensinar nos Seminários da igreja patriótica, contribuindo então para a popularização do Novus Ordo. Apesar disso, e trata-se de uma revelação feita agora pelo Cardeal, já nessa época, a tal ponto estava convencido da legitimidade da liturgia tradicional, que fazia questão de sublinhar aos seus alunos que o antigo missal continuava válido.

2) O ano de 2014 foi um ano de graças para a comunidade tradicional de Hong-Kong: dois dos seus membros, um dos quais um dos fundadores da comunidade, foram ordenados sacerdotes (um para a Fraternidade de São Pedro, o outro para a diocese), e um terceiro, salesiano como o Cardeal Zen, foi ordenado diácono. Um religioso, um “Ecclesia Dei” e um diocesano: também no “fim do mundo”, a liturgia tradicional é vivida e celebrada em ambiente de paz e de crescimento espiritual, e também aí, é fonte fecunda de vocações sacerdotais, contribuindo para o esforço da nova evangelização.

3) “Quem gosta da forma extraordinária deve poder ter acesso a ela. É um direito que lhes assiste.” Rezemos par que esta tão elementar sabedoria vinda do Oriente esclareça as nossas comunidades e os nossos pastores, e que os encoraje a crescer na caridade e na generosidade para com aqueles que se apresentam a pedir a forma extraordinária do rito romano.