Carta 72 publicada a 9 setembro 2016

Nos arredores de Portland, o indulto de Santa Brígida

A próxima peregrinação “Populus Summorum Pontificum” (Núrsia-Roma, de 27 a 30 de Outubro de 2016) será guiada por um pastor de excepção, Mons. Alexander K. Sample, arcebispo de Portland. No intuito de preparar a sua vinda, um dos organizadores da peregrinação teve o privilégio de passar alguns dias na sua longínqua diocese, onde teve a alegria de alguns magníficos encontros. Este foi um deles…




I – Nas margens do rio Willamette, 100 anos ininterruptos de missa tradicional.
 
Num qualquer lugar da periferia de Portland – a capital económica do Oregon, na costa oeste dos Estado Unidos, entrincheirada entre a estrada e o caminho-de-ferro que ladeiam o vale do Willamette –, deparamo-nos com uma rústica casa de madeira. Para saber do que se trata é preciso reparar no cartaz erguido à margem da estrada: em letras pintadas numa tinta já gasta, lêem-se aí as palavras “Latin Mass”. Só o cartaz nos revela que este edifício não é como os outros: trata-se, com efeito, da igreja de Santa Brígida (“Saint Birgitta”), o coração da paróquia com o mesmo nome, consagrada a 16 de Julho de 1916. Aqui, desde há 100 anos, e apesar da reforma litúrgica, jamais deixou de ser celebrada a missa de São Gregório Magno, de São Pio V e de São João XXIII. Em perfeita comunhão com Roma e com o Ordinário local.
 
Entre 1954 e 1994, o encargo pastoral da paróquia de Santa Brígida esteve confiado a um missionário de origem croata, o Padre Milan Mikulich. A longevidade providencial do apostolado deste franciscano contribuiu muitíssimo, sem dúvida, para que se conservasse a liturgia tradicional nesta ilhota de cristandade encravada na costa oeste dos Estados Unidos. No entanto, este pequeno milagre de Santa Brígida começou com apenas um punhado de fiéis.
 
A cavalo entre os anos 60 e 70, quando já proliferava a missa nova, quatro famílias de paroquianos comunicaram ao Padre Milan o seu desejo de que se conservasse a missa latina e gregoriana. Ciente da deserção que ameaçava a sua comunidade, em particular por causa do isolamento geográfico da paróquia, o Padre Milan viu nisso um meio para preservar a própria paróquia, senão mesmo para a renovar. Valeu-se então da sua amizade com um cardeal romano – muito provavelmente o seu compatriota, o Cardeal Seper, predecessor do Cardeal Ratzinger à frente da Congregação para a Doutrina da Fé – para poder obter do Papa Paulo VI um indulto que lhe permitisse continuar a celebrar segundo o missal de 1962.
 
De facto, até que se jubilou, altura em que voultou para a Croácia, o Padre Mikulich foi deixado à vontade pelos sucessivos arcebispos de Portland para poder oferecer a missa tradicional. Em seguida, um sacerdote que, de tempos a tempos, o ajudava propôs-se suceder-lhe e garantir assim a continuidade litúrgica e pastoral em Santa Brígida. Foi assim que, em 1994, o Padre Joseph Browne, C.S.C., deixou a Universidade Católica de Portland para vir oferecer 15 anos de dedicado serviço em Santa Brígida. 

Em 2009, enquanto se esperava a nomeação do novo pároco, a ser chamado para atender a esta comunidade tradicional local foi o Padre Luan Tran, um sacerdote de origem vietnamita – Portland conta com uma importante comunidade de refugiados do Vietname do Sul –; isto já no no âmbito do quadro pacificado do motu proprio Summorum Pontificum. Por fim, em 2010, o próprio Pe. Tran acabou por ser nomeado pároco.

Este pároco exemplar de uma paróquia que vive plenamente a paz litúrgica in utroque usu – isto é, fazendo uso de ambas as formas do rito romano – vê no isolamento de Santa Brígida uma bênção: «Quanto mais estamos escondidos do mundo, e menos aparecemos à cena, e mais nos aplicamos a obedecer a Deus em todas as coisas, a ser fiéis ao Magistério e à hierarquia da Igreja, tantas mais graças recebemos.»
 
«Tanto quanto sei», continuou, «não houve sequer um domingo em que não tenha havido a missa tradicional em Santa Brígida: ao longo de todos estes anos, o Bom Deus, a Santíssima Virgem e Santa Brígida permitiram que se mantivessem as portas sempre abertas aos fiéis que lhe estão ligados. Os paroquianos e os sacerdotes desta igrejinha insignificante jamais param de se maravilhar diante da generosidade e da bondade do nosso Bom Deus, da solicitude da Virgem Santíssima, da protecção de São Miguel e de São José e da intercessão de Santa Brígida.»
 
 
II – As reflexões da “Paix Liturgique”
 
1) Ainda que o texto tenha sido praticamente ignorado pelos bispos locais, na nossa Carta francesa 548, lembrávamos a importância histórica do indulto “Agatha Christie”, concedido em 1971 pelo Papa Paulo VI aos católicos britânicos que desejavam poder continuar a rezar seguindo o «antigo missal romano». A história da paróquia de Santa Brígida vem bem a propósito, para nos lembrar que este indulto, que era colectivo, foi precedido por vários indultos privados, os mais célebres dos quais foram aqueles outorgados ao Padre Pio e a São Josemaría Escrivã.
 
2) O interesse particular deste indulto concedido ao missionário croata reside no facto de que ele não foi directmente o fruto de um desejo do sacerdote, mas antes do das suas ovelhas. Trata-se, de certo modo, de uma excelente ilustração (porque pacificamente coroada de sucesso) da importância do papel dos leigos na salvaguarda da tradição católica. Se o missal tridentino se conservou depois de 1969, tal deveu-se a uma reacção do sensus fidelium, do instinto da fé dos fiéis que, em todo o mundo, envidaram todos os esforços para que ele fosse mantido. A não recepção da reforma litúrgica à época, levou as autoridades romanas ao reconhecimento expresso da legitimidade da celebração segundo o missal antigo (*). Os paroquianos de Santa Brígida foram assim a prefiguração do que o Papa Bento XVI viria a definir no motu proprio Summorum Pontificum como um «grupo de fiéis estavelmente aderentes à precedente tradição litúrgica».

3) Temos insistido com frequência na dimensão missionária da liturgia tradicional no particular contexto da reevangelização. É, pois, interessante que tenha sido um missionário a mostrar ter o instinto de se apoiar sobre a liturgia tradicional a fim de relançar a sua paróquia que, devido ao próprio isolamento, se encontrava moribunda. De facto, hoje, como sempre desde os anos 70, todos os domingos, às 9h30, o parque de estacionamento e os bancos de Santa Brígida estão repletos. Sublinhemos, por fim, que o instigador desta celebração era croata e que o seu actual sucessor è de origem vietnamita: mais uma ilustração de que a ligação à missa tradicional não é de todo uma particularidade francesa, mas sim um amor universalmente partilhado e procurado.

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(*) «Em algumas regiões, contudo, não poucos fiéis estavam apegados, e continuam a estar, com grande amor e afecto às formas litúrgicas anteriores, que tinham impregnado tão profundamente a sua cultura e o seu espírito que o Sumo Pontífice João Paulo II, movido pela solicitude pastoral para com estes fiéis, no ano de 1984, com o indulto especial “Quattuor abhinc annos” emitido pela Congregação para o Culto Divino, concedeu a faculdade de se usar o Missal Romano editado em 1962 pelo Beato João XXIII; mais tarde, no ano de 1988, ainda João Paulo II, com a Carta Apostólica “Ecclesia Dei”, dada sob a forma de motu proprio, exortou os Bispos a fazerem, ampla e generosamente, uso desta faculdade em favor de todos os fiéis que o solicitassem» (Bento XVI, motu proprio Summorum Pontificum, 7 de Julho de 2007).