Carta 78 publicada a 24 março 2017

Encontro com Aurelio Porfiri: “Servir a Deus pela liturgia o melhor que permitam as minhas capacidades”

«A música sacra ocidental, para mim, é a demonstração da verdade do cristianismo» – Bento XVI, 4 de Julho de 2015.

Por ocasião da conferência de imprensa que anunciava a comemoração em Roma dos 10 anos do motu proprio Summorum Pontificum, o “Cœtus Internationalis Summorum Pontificum” deu notícia de ter encomendado a criação de uma obra musical original para a missa pontifical que será celebrada em São Pedro, no sábado 16 de Setembro de 2017, às 11 horas. A iniciativa, rara na paisagem da música sacra hodierna, dá testemunho de que a liturgia romana tradicional é uma fonte de inspiração que não se extingue.

Para tentar saber algo mais acerca desta iniciativa histórica, encontramo-nos com o Maestro Aurelio Porfiri, que irá compor e dirigir essa obra em homenagem do motu proprio de Bento XVI.



O Maestro Porfiri a dirigir um coro em Macau, e, à direita, sentado ao órgão da Capela Sistina.


I – A entrevista com o Maestro Porfiri

1) Aurelio Porfiri, como foi que nasceu a sua vocação musical?

Aurelio Porfiri: Era ainda muito miúdo quando, numa galeria comercial, reparei num órgão electrónico, desses que se viam nos anos 80. Pu-lo logo no topo da minha lista de presentes de Natal, e os meus pais ouviram o meu pedido. Tudo começou com esta prenda, e a paixão que me levava a passar horas a fio sobre as suas teclas, ou sobre as do harmónio da paróquia, à procura de novas melodias, novos acordes, novas criações.

2) Qual foi o seu percurso artístico e profissional?

Aurelio Porfiri: Estudei órgão, composição e direcção de coro. Depois do diploma do conservatório, trabalhei em muitas igrejas e basílicas romanas, como Santa Maria in Trastevere, São Crisógono, Santa Susana e outras mais. Também fui organista substituto em São Pedro durante vários anos, até 2008, ano da minha partida para a China. De facto, entre 2008 e 2015, estive a trabalhar em Macau, e foi um período que me marcou profundamente. Uma vez regressado a Roma em 2015, passei a dedicar-me, no meu quarteirão natal, o Trastevere, a certos projectos que me são queridos, como composições, artigos, livros, etc.

3) Como chegou depois à música sacra?

Aurelio Porfiri : Estou verdadeiramente convencido de que foi um chamamento. Estava numa paróquia onde se tocavam as cançonetas das últimas décadas, e sentia ter necessidade de algo de mais profundo, de um alimento mais rico. Entre um encontro e outro, tirando partido das oportunidades que se me deparavam, fui tendo as minhas primeiras experiências de música sacra… e foi assim!

4) Além de músico, é também o autor de numerosos artigos e livros, e editor de textos litúrgicos, teológicos e espirituais. Agora, lançou também uma revista de liturgia on line, cujo terceiro volume acaba de sair: seria possível que no-la apresentasse?

Aurelio Porfiri: Altare Dei é o seu título, e pretende ser uma ponte entre os mundos católicos europeu e anglo-saxão. A revista pode ser descarregada em PDF, e oferece os contributos de reconhecidos especialistas em liturgia, música sacra e cultura católica. Além disso, cada edição inclui ainda um suplemento musical com partituras de extractos de música sacra de compositores contemporâneos. Encontra-se à venda no site Choralife.

5) Em 2011, Riccardo Muti queixava-se das cançonetas que se ouvem na missa, e propugnava o regresso «ao grande património musical cristão»: na sua opinião, a forma extraordinária pode contribuir para a restauração do canto litúrgico nas celebrações segundo a forma ordinária?

Aurelio Porfiri: Poderia, mas era preciso que a sinergia desejada por Bento XVI existisse realmente. Mas sejamos honestos e realistas : esta sinergia não existe! Continua a haver duas Igrejas, como já era o caso antes do Summorum Pontificum: uma Igreja que, de modo gramsciano, tomou conta das rédeas do poder, e outra que continua a resistir, com mais ou menos sucesso…

6) Este ano assinala o décimo aniversário do motu proprio Summorum Pontificum que acabou de citar. Será que o enriquecimento mútuo de que Bento XVI fazia votos é possível e desejável no campo musical?

Aurelio Porfiri: Assim o espero, e acredito fortemente que sim. Porém, infelizmente, as resistências são fortes e numerosas, de todos os lados. Algumas posições são difíceis de conciliar de tão encerrados que se mostram alguns espíritos. Permaneço todavia convencido da grande justeza da visão de Bento XVI.

7) A 16 de Setembro de 2017, irá dirigir na Basílica de São Pedro, em Roma, a missa pontifical que é parte das celebrações oficiais do décimo aniversário do motu proprio. Para essa ocasião, está até a trabalhar na composição de uma missa original, coisa rara nos dias de hoje, e aliás, tanto numa como noutra das formas do rito romano. A nosso ver, esta é a prova da eterna juventude da liturgia tradicional: concorda?

Aurelio Porfiri: Tem razão. Nova et vetera: é precisamente disso que se trata, da eterna juventude da Tradição, que, também hoje, nos fala e nos convida a tirarmos para fora dos nossos escaninhos o antigo que serve de modelo ao novo, e o novo que faz reviver o antigo. É um desafio difícil aquele que me foi lançado; sei bem que não será fácil fazer com que os observadores fiquem contentes. Mas pouco importa, desde que eu consiga ser artisticamente honesto e servir a Deus na liturgia o melhor que as minhas capacidades me permitam.


II – As reflexões da Paix Liturgique


1) Desde Fevereiro de 2016, a nossa edição italiana tem a alegria de poder oferecer aos seus leitores uma série de artigos do Maestro Porfiri, dedicados a relação entre a música sagrada e a liturgia. Na senda da constituição conciliar sobre a santa liturgia, estes artigos, Aurelio Porfiri oferece nestes artigos uma reflexão argumentada que parte do rico magistério musical dos Papas do século XX, em particular o motu proprio Tra le sollecitudine de São Pio X, de Novembro de 1903, a constituição apostólica Divini Cultus Sanctitatem de Pio XI, de Novembro de 1928, e a encíclica Musica Sacræ Disciplinæ de Pio XII, de Dezembro de 1955. Até agora, já se debruçou sobre os temas da participação, da solenidade, do enriquecimento do repertório, da distinção fundamental entre canto religioso e canto litúrgico – e da lamentável confusão entre ambos desde a reforma litúrgica –, das antífonas; e o próximo artigo ocupar-se-á do papel missionário desempenhado pelo música sacra.

2) Os três primeiros números de Altare Dei, a revista electrónica dirigida pelo Maestro Porfiri, juntam autores com influência na paisagem litúrgica actual como o Prof. Fagerberg, da Universidade de Notre-Dame, que aí tem uma rubrica sobre a teologia da liturgia, e o Prof. Kwasniewski, infatigável promotor da forma extraordinária do rito romano. Na secção musical, à volta de Aurelio Porfiri estão Mons. Miserachs Grau, director desde há 40 anos da Capela Liberiana da Basílica de Santa Maria Maior, e o Pe. Friel, jovem organista e compositor da diocese de Filadélfia. Além de artigos de fundo, a revista propõe também entrevistas como aquela feita a Mons. Marchetto, historiador do concílio que segue a tendência da “hermenêutica da continuidade”, e alguns testemunhos, como o do compositor Colin Mawby. Por fim, o que é uma grande originalidade da Altare Dei no dizer dos especialistas, cada número inclui um caderno contendo 5 a 7 partituras de música sacra contemporânea. Custando 6 euros o número, é certamente um presente ao mesmo tempo útil e acessível que pode oferecer ao organista da sua igreja!

3) Nas suas respostas às nossas perguntas 5 e 6, Aurelio Porfiri deixa transparecer um pessimismo categórico. Para lá da sensibilidade de artista, deve confessar-se que este é o estado de espírito que encontramos hoje em muitos católicos que vivem em Roma, tanto eclesiásticos como leigos. O pontificado de Bento XVI tinha suscitado, de facto, um grande entusiasmo por entre os seguidores da forma ordinária, transformado frequentemente em decepção após a sua demissão e a chegada do Papa Francisco, que se mostra pouco interessado pelas questões litúrgicas. Munidos da experiência vinda do tratamento a que se foi sujeitndo a liturgia tradicional no curso do último meio século, não podemos deixar de encorajar os nossos irmãos “ordinários” feridos pela interrupção brutal da “reforma da reforma” – como o ilustra tristemente a sorte que teve o apelo do Cardeal Sarah para que se celebrasse ad Orientem – a não se deixarem desmoralizar pelos ventos contrários. Com efeito, e mesmo sabendo que os tempos de Deus não são aqueles dos homens, quando estes se empenham com paciência e constância em trabalhar e operar ad maiorem Dei gloriam, então o bom Deus acaba sempre por dar às suas almas em sofrimento o conforto de que carecem.

4) A 5 de Março de 2017, por ocasião do 50° aniversário da instrução Musicam sacram, mais de 200 personalidades publicaram um apelo internacional redigido por iniciativa do Maestro Aurelio Porfiri e do Professor Peter Kwasniewski. Este apelo parte de uma análise lúcida da actual situação da música sacra para, em seguida, passar a formular oito propostas concretas susceptíveis de contribuir para «restaurar a dignidade da liturgia e da música na Igreja». Convidamo-vos vivamente a lerem este apelo, traduzido em seis línguas, no blog Altare Dei. No dia 4 de Março, o próprio Papa reconhecia que: «o encontro com a modernidade e a introdução das línguas faladas na Liturgia suscitou numerosos problemas: de linguagens, de formas e de géneros musicais. Às vezes chegou a predominar uma certa mediocridade, superficialidade e banalidade, em detrimento da beleza e da intensidade das celebrações litúrgicas» (Mensagem aos participantes do congresso internacional por ocasião dos 50 anos da Musicam sacram).