Carta 79 publicada a 24 abril 2017

SUMMORUM PONTIFICUM, UM OÁSIS ESPIRITUAL PARA OS SACERDOTES DE HOJE

«Nós devemos ter a coragem de criar ilhas, oásis, e depois grandes terrenos de cultura católica, nos quais viver o desígnio do Criador» – Bento XVI, 6 de Abril de 2006.

***

O direito canónico prevê que todo o sacerdote, tanto secular como regular, possa dispor cada ano de um tempo de retiro espiritual (cânones 276 e 719). Tanto as dioceses como os institutos propõem exercícios espirituais aos respectivos sacerdotes, mas, pelo menos no que toca ao clero diocesano, a escolha do retiro é deixada à sua própria iniciativa individual. Acontece amiúde que estes retiros permitem aos sacerdotes “ordinários” a possibilidade de viverem uns quantos dias ao ritmo da liturgia e da espiritualidade tradicionais; em particular – é o que acontece, por exemplo, em França – no discreto silêncio de alguns mosteiros.

Sucede, porém, que em muitos países, não se encontram tais oásis espirituais, e os sacerdotes ligados, ou simplesmente atraídos pela forma extraordinária do rito romano vêem-se na necessidade de se dirigir aos institutos Ecclesia Dei ou à Fraternidade São Pio X, ou então de se organizar entre eles. É o que acontece em Itália, onde, por iniciativa do Rev. Pe. Vicenzo Nuara, O.P., a “Amicizia Sacerdotale Summorum Pontificum” vem oferecendo desde há já sete anos uma oportunidade deste género aos sacerdotes, e mesmo, por vezes, a alguns que jamais tiveram a oportunidade de fazer a experiência da Tradição.



I – TRES QUESTOES PARA O PADRE NUARA
Respostas obtidas em Roma, no final dos exercícios espirituais de 2017 da l'ASSP (Fevereiro de 2017).

1) Senhor Pe. Nuara, como se desenrolam estes dias de retiro espiritual?

Pe. Nuara: Diria que de maneira muito tradicional! Já vamos no nosso sétimo ano. Todos os anos, convidamos um pregador diferente, que desenvolve um tema escolhido por ele, sobre este ou aquele aspecto da vida sacerdotal e espiritual. Este ano, a “Amicizia Sacerdotale Summorum Pontificum” tem a alegria de receber o fundador dos monges de Núrsia, o Rev. Senhor Pe. Cassian Folsom, O.S.B., que nos veio instruir acerca da santa liturgia como fonte de santificação. O pregador faz duas conferência por dia, depois de Terça e de Nona. De facto, são dias ritmados pela recitação comum do Ofício Divino, desde Laudes até Completas. Quanto ao resto, domina o silêncio. Além disso, os sacerdotes vão-se alternando ao longo do dia junto dos quatro altares de que dispomos para a celebração das suas missas privadas.

2) Quem participa nos vossos retiros?

Pe. Nuara:
Todos os sacerdotes são bem-vindos. Sejam diocesanos ou não, celebrem ou não a forma extraordinária, italianos ou estrangeiros (este ano, por exemplo, temos até um missionário polaco vindo da Ásia!). Acontece muitas vezes que venham aos pares, um convidando o outro. Claro está que, mesmo quando não estão familiarizados com a forma extraordinária, são sacerdotes de algum modo atraídos pela espiritualidade tradicional. Para alguns, trata-se de uma ocasião para se reencontrarem com a própria identidade sacerdotal, com a própria vocação. Há mesmo os que admitem ter deixado de lado a prática do retiro espiritual, desagradados com o ruído e com a superficialidade de alguns que costumavam frequentar. O silêncio que aqui descobrem entre nós, mesmo quando se torna difícil respeitá-lo, é um tesouro por eles muito acarinhado.

3) Para além dos frutos individuais que resultam deste tipo de retiro, também se pode falar de frutos colectivos?

Pe.Nuara:
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que este retiro anual é em si mesmo um fruto do motu proprio de Bento XVI. Além disso, ao fim destes sete anos de retiros, é evidente que os frutos de uma tal semana de intensa vida espiritual e litúrgica ultrapassam o quadro individual.
No dizer dos participantes, este retiro é ao mesmo tempo uma experiência de caridade sacerdotal, de caridade fraterna e de caridade espiritual.
- Uma experiência de caridade sacerdotal, porque acorre a uma necessidade primordial da vida sacerdotal que corresponde também a um dever canónico dos sacerdotes. Há sacerdotes que sofrem por não conseguir encontrar nos retiros propostos pelas respectivas dioceses ou comunidades o alimento de que necessitam. É precisamente este momento chave da sua vida espiritual que tratamos de lhes oferecer graças ao motu proprio Summorum Pontificum.
- Uma experiência de caridade fraterna, porque permite a sacerdotes frequentemente isolados, de modo especial por causa da sua sensibilidade tradicional, a possibilidade de se acharem entre irmãos. Para eles, é uma ocasião de partilhar, por meio do que o Cardeal Sarah justamente apelidou de «a força» do silêncio, um intenso momento de oração, reflexão e meditação. Durante alguns dias, eles não têm a impressão de serem uns estrangeiros…
- Por fim, uma experiência de caridade espiritual, porque permite a oportunidade de dar descanso, cuidar e fortificar a alma. É para todos uma ocasião de reavivar o dom de Deus, a graça sacramental recebida com a ordenação. Assim, enchem o depósito do zelo apostólico, para, uma vez de volta ás suas paróquias ou gabinetes, poderem estar mais ao serviço das almas que lhes estão confiadas.


Muitos sacerdotes aproveitam o seu tempo de retiro espiritual para descobrir a forma extraordinária do rito romano.


II – AS REFLEXOES DA PAIX LITURGIQUE

1) Reencontrar a própria identidade sacerdotal, reavivar a graça sacramental da ordenação, fazer tesouro do silêncio: eis as razões que atraem os sacerdotes aos retiros do Pe. Nuara, e que são as mesmas que também atraem muitos fiéis, tantas vezes em ruptura com a prática religiosa, a abraçar a forma extraordinária do rito romano. A nós, leigos, o silêncio dos santos mistérios, tal como foram celebrados pela Igreja por tantos séculos, ajuda-nos a reencontrar o sentido da nossa fé, a renovar as promessas do nosso baptismo, e, para usar uma imagem, a abandonar a nossa pele de homem velho para melhor nos revestirmos de Cristo. Claro está que esta demanda de transcendência, de alimento espiritual destoa numa sociedade cada vez mais horizontal, materialista e imediata, que é também o caso da sociedade católica. Daí a necessidade de aproveitar certos momentos para recarregar a alma: peregrinações, exercícios espirituais, devoções privadas ou públicas, que, aliás, proliferam por entre o povo Summorum Pontificum.


2) Quanto aos sacerdotes, é-lhes pedido que persigam a santidade, «uma vez que, consagrados a Deus por novo título na recepção da ordem, são os dispensadores dos mistérios de Deus para o serviço do Seu povo» - assim diz o cânone 276. Mais ainda do que aos fiéis, exige-se-lhe que façam regularmente «exercícios» que lhes permitam melhor examinar a própria consciência, fazer um balanço diante de Deus da própria vida sacerdotal, reavivar a prática da oração, fortificar-se na ascese e na vida de virtude. Sem dúvida que o podem fazer em vários lugares e servindo-se das várias propostas de retiros, mas, como o mostra a experiência, o quadro da liturgia tradicional é particularmente apropriado para revigorar as raízes da sua existência sacerdotal.

3) A liturgia tradicional, para além das suas qualidades espirituais e doutrinais ad extra, isto è, dirigidas aos fiéis, tem também um possante “valor nutritivo” ascético e místico para os sacerdotes que a celebram. Este apelo à santidade e à piedade do ministro que oferece os santos mistérios, encontra-se inscrito com grande vigor no usus antiquior por meio das numerosas orações que emolduram os momentos altos do sacrifício (orações de preparação dos ministros, orações para a aplicação do sacrifício no ofertório, orações de preparação para a comunhão e orações de acção de graças). Aliás, como confessou o principal reformador da liturgia (*), Mons. Annibale Bugnini, quando a missa nova foi apresentada pela primeira vez aos bispos – por ocasião do Sínodo de 1967 –,  a impressão que tiveram foi muito negativa, nomeadamente porque muitos dentre eles a acharam “empobrecida”. Isto, precisamente em virtude da supressão de todo esse magnífico corpo de orações.

4) Diga-se por fim que, como pano de fundo da iniciativa do Pe. Nuara e de outras semelhantes – pensamos, por exemplo, ao “Opus Sacerdotale” (França), ao “Netzwerk katholischer Priester” (Alemanha) o ao “Confraternity of Catholic Clergy” (EUA, Austrália, Irlanda, Reino Unido) –, encontramos o tema crucial da necessidade de uma reforma do clero diocesano. Historicamente, os grandes momentos da Igreja, como a reforma gregoriana ou a contra-reforma do Concílio de Trento, foram estruturados por meio de uma exigente renovação espiritual, ascética e doutrinal do clero, em especial daquele diocesano, com a ajuda de certos institutos fundados para oferecerem uma ajuda aos clérigos “do terreno”, ou que entretanto se reformaram orientando-se nesse sentido (tal o caso das inumeráveis fundações de seminários pelos Eudistas ou pelos Lazaristas, ou os exercícios espirituais organizados pela Companhia de Jesus para sacerdotes). Hoje, com a crise liberal nascida do concílio Vaticano II a continuar a provocar devastações, este virtuoso esquema pode encontrar-se ainda no convite à renovação vindo das comunidades e institutos que vivem ao ritmo da forma extraordinária do rito romano.

-------
(*) Annibale Bugnini, La réforme de la liturgie (1948-1975), Desclée de Brouwer, 2015, pp. 375.