Carta 89 publicada a 25 abril 2018
Na China, há procura para a missa tradicional em todas as paróquias!
- Entrevista ao pároco de São José de Xangai -
Na China, há procura
para a missa tradicional em todas as paróquias! -
Entrevista ao pároco de São José de Xangai.
Este mês, apresentamos
um testemunho exclusivo. Graças a um leitor amigo, a quem vivamente
manifestamos o nosso reconhecimento, podemos deixar-vos aqui uma entrevista ao
pároco de São José de Xangai, que, uma vez por mês, à hora principal da missa
de domingo, proporciona aos seus paroquianos a celebração na forma
extraordinária. Trata-se de um documento único: desde logo, porque estamos diante
do testemunho de um sacerdote num país onde a Igreja se encontra debaixo de
estreita vigilância; depois, porque se trata de um dos raríssimos párocos deste
imenso país que celebra oficialmente segundo as disposições do motu proprio Summorum Pontificum; e, por fim, porque
esta é uma voz que nos chega de uma das metrópoles mais desiguais e
materialistas de todo o planeta. A entrevista teve lugar a 7 de Abril de 2018,
domingo in albis. Convidamos, enfim,
todos os nossos leitores a rezarem por este sacerdote e pela sua comunidade.
N.B.: de 14 a 22 de
Maio, um enviado da “Paix Liturgique” viajará até à Ásia para aí realizar uma
reportagem sobre as comunidades tradicionais de Seul, Taipé, Hong-Kong e
Singapura. Agradecemos qualquer informação sobre eventuais contactos que possam
ter nessas paragens e que nos possam ser úteis. São igualmente bem-vindas asofertas que queiram fazer-nos chegar para cobrir os custos desta viagem, cujo
orçamento se estima em 2.5000 euros.
1) No Ocidente, a
história da missa em latim é complicada: a sua interdição de facto em 1970,
aquando da promulgação do novo missal, mantém-na à margem, seguindo-se depois
um reflorescimento progressivo até aos nossos dias, e agora ocupa um
lugar muito significativo entre os jovens, também em termos de vocações. Na
China, tudo foi com certeza muito diferente: será que nos poderia ilustrar o
lugar que aí teve a missa na forma tradicional ao longo dos últimos 50 anos?
A missa em latim, na
China, é algo que abrange muito poucas pessoas: segundo sei, celebra-se apenas
em três lugares em toda a China: numa paróquia a sul de Pequim, na minha
paróquia, em Xangai, e em Wuhan (1), onde, pelo que vi na internet, um
sacerdote recomeçou a dizer a missa tradicional. Um sacerdote de 52 anos, como
eu. O que quer dizer que, também como eu, deverá ter sido ordenado há cerca de
23 anos, mesmo antes da introdução do novo missal.
Na China, as igrejas e
os seminários encerrados em 1950 foram reabertos em 1978. Nessa data não houve
mudanças, nem na liturgia nem no ensino do seminário, tudo foi retomado tal como
era antes. Foi somente em 1995 que se veio a aplicar o novo ordo, e que se
deixou de ensinar latim e a antiga liturgia no seminário.
2) No caso da sua
paróquia, como foi que decidiu começar a celebrar a missa tradicional uma vez
por mês e nos dias das grandes festas?
Na minha paróquia, de 1987 a 2007, a
missa tradicional nunca deixou de ser celebrada, sempre pelo mesmo pároco. Quando, em 2007, ele morreu e eu fui
nomeado pároco, continuei a fazê-lo, sempre atendendo ao pedido dos meus
paroquianos.
3) Se o faz a pedido
dos paroquianos, porque é que isso acontece em São José e não noutros lugares?
Em todas as paróquias, há uma procura
por parte dos paroquianos no sentido de se conservar a missa tradicional! Mas, como os novos sacerdotes não
estavam formados, os coros foram extintos, os acólitos desapareceram, e
perdeu-se a “habilidade”. É uma pena
muito grande, porque, hoje, os que mais se interessam pela missa tradicional
são os jovens. Certamente que, da parte deles, ao início, é necessário um
certo esforço intelectual para poderem compreender a missa tradicional. Mas,
assim que fazem este esforço inicial, já não querem voltar atrás, à forma
moderna em chinês.
Paradoxalmente, não
encontramos o mesmo apetite entre os jovens sacerdotes. São eles os que se
mostram mais reticentes em relação à missa tradicional. Um deles, saído do meu
seminário, disse-me recentemente que o latim «fazia muito mal à Igreja!». Ao
passo que eu, o que sinto é que o latim me liga à vida da Igreja universal.
Este distanciamento
entre sacerdotes e fiéis existe desde 1995, desde que se começou a ensinar aos
sacerdotes a descontraírem-se, a serem mais relaxados e desenvoltos. Como se
constantemente devessem estar a mostrar que se libertaram de qualquer coisa.
Celebram a missa a coçar-se, a saltitar... E mais: 90% dos meus confrades em
Xangai já não rezam em preparação para a missa. Há um que chega
sistematicamente à sua igreja depois das 7h00, sendo que a missa está marcada
para as 7h00. Por isso, parece-me evidente que não teve possibilidade de se
preparar bem.
4) A missa em latim na
sua paróquia é também um caso particular: não é uma missa em alternativa;
trata-se antes da missa paroquial habitual que, uma vez por mês, é dita na
forma tradicional. Como é que os seus paroquianos reagem a isto? Nesses
domingos, as pessoas que vêm à igreja são exactamente as mesmas?
Não, não é bem o mesmo.
Os que vêm à missa tradicional são mais numerosos, porque vêm de toda a cidade
de Xangai, enquanto que, nos outros domingos, tenho apenas os paroquianos da
minha zona geográfica. Habitualmente, ao domingo, somos pouco menos de 200 pessoas,
e nos domingos em que celebro a missa tradicional, somos um pouco mais de 300.
5) A si pessoalmente, enquanto sacerdote e pastor, o que é que lhe traz esta celebração regular do antigo ordo?
Quando celebro a forma
moderna, tento não esquecer as instruções da forma tradicional. Acho que, se o senhor o
visse, ficaria surpreendido [risos]: uso casula e barrete para celebrar a forma
moderna! Na forma moderna, tudo está liberado, já não há regras. Como
sacerdote, tenho sempre uma angústia: «Terei celebrado bem o Santo Sacrifício?
O milagre da transubstanciação teve lugar apesar de tudo, não me distraí, não
tive falta de fé?» Com o ordo antigo, basta deslizarmos para dentro do molde e
seguirmos as instruções, e nunca tenho essa angústia. É algo muito pessoal, mas
o antigo ordo ajuda-me a conservar a fé, jamais tenho qualquer dúvida a
respeito da realidade e da validade da consagração. O antigo ordo ajuda-me a
ter ardor e a ser rigoroso.
Fosse eu professor no
seminário, e sem dúvida alguma logo recomendaria aos seminaristas que
celebrassem a missa tradicional. Foi o que fez um dos meus professores no
seminário, um salesiano. Hoje, encontra-se retirado em Hong-Kong. É um grande
amigo da missa tradicional, celebra-a frequentemente.
6) Consegue identificar
na vida paroquial frutos específicos que provenham daí?
Primo: de cada vez,
tenho a sensação do dever cumprido. A minha missa é dita com ardor, nunca é
esbatida.
Secundo: de cada vez,
vejo chegarem novos paroquianos.
[Neste momento, o
sacerdote pegou no telemóvel e percorreu várias fotografias tiradas da
internet. A primeira mostra o Papa Francisco enquanto celebra ad orientem na
Capela Sistina. A segunda, um sacerdote em adoração diante do Santíssimo
Sacramento]. Tertio: sabe, de cada
vez que as pessoas vêem um sacerdote nesta atitude, há quem se converta!
7) Para lá das questões
estritamente espirituais, tem também a sensação de que há um combate cultural
em curso, na perspectiva de um acto de transmissão ou de uma forma de
resistência à sociedade envolvente?
Não fico a pensar que esteja a transmitir um património. É verdade que tenho uma fé
“tradicional”. É um facto, não consigo ensinar o catecismo a não ser de maneira
“tradicional”. Ensino a maneira “tradicional” de servir à missa, paramento-me
de maneira “tradicional”. Não consigo ser doutra maneira. Desde há 23 anos que,
todos os domingos, uso batina. Envergo a sobrepeliz branca para administrar a
extrema unção, o que os outros sacerdotes já não fazem (2). [Pega de novo no
telemóvel e mostra fotografias da ordenação de um jovem sacerdote de uma
comunidade Ecclesia Dei] E sabe uma coisa, quando, por acaso, encontro na
internet fotografias como esta, um jovem sacerdote na Polónia, sei que estou em
plena comunhão com a Igreja universal. [O entrevistador emociona-se, pois
conhece bem estas fotografias e lembra-se como chorou a primeira vez que as
viu. Na realidade, elas não foram tiradas na Polónia; trata-se sim de
fotografias da ordenação do Pe. Côme Rabany, FSSP, enquanto abençoa os próprios
pais à saída da missa de ordenação] Quanto ao facto de ser contracorrente na
sociedade do materialismo e do rei dinheiro … não penso muito nisso. Quando se
é católico, é verdade que não devemos dar ao dinheiro aquela importância que os
xangaienses em geral lhe atribuem. De um modo geral, não estou certo de que a
Igreja Católica e, em particular, a missa tradicional interessem muito aos
ricos.
8) Na prática, como é
que tudo se passou? Foi preciso reaprender o gregoriano, ir à procura dos
velhos missais perdidos? Ainda tinha paramentos? Fez novas traduções? Teve de
proceder a ajustes litúrgicos?
Visto que, na nossa
paróquia, não tinha havido interrupção, tínhamos guardado todos os paramentos e
os missais. As pessoas ainda sabiam cantar o gregoriano. Tivemos um bom coro
até 2007, e pudemos relançá-lo. Quanto ao ordo, dizemos a missa “de antes da
Revolução”, ou seja, tal como era celebrada em 1949. De facto, conservei todos
os livros do meu predecessor. Por exemplo, para o 15 de Agosto, cantamos o
antigo intróito Gaudeamus e não o da missa tal como foi definida por Pio XII. Repare-se que quando o dogma da Assunção foi proclamado, já não havia missa na
China!
9) Outrora, e durante
algumas décadas, a sua igreja foi uma paróquia francesa. À parte a
arquitectura, resta ainda alguma coisa dessa presença?
Dentro da igreja, há
ainda uma placa funerária em memória de Blanche de Montigny, filha do primeiro cônsul
francês, que foi esquecida pelos que aqui vieram partir as coisas. Todos os
outros vestígios franceses no interior da igreja foram destruídos. Já no que
respeita à comunidade, a história é outra. Dizia-se outrora de Xangai que era
um anexo do arcebispado de Paris, a tal ponto eram aí numerosos e activos os
missionários franceses. Disso, ainda nos restam alguns tesouros. [Dito isto, o
sacerdote mostrou um quadro com uma fotografia de grandes dimensões a preto e branco, com o título em francês “Concílio plenário de Xangai, 1924”. Na
fotografia, vêem-se muitos bispos, superiores de comunidades e o núncio
apostólico. Com o dedo, passa de rosto em rosto, falando deste ou daquele, de
quem conhece a história, e mostrando os franceses...] O núncio apostólico nesta
fotografia veio a ser cardeal … Este morreu mártir, e foi canonizado … Este foi
capturado pelos japoneses, defendeu os seus sacerdotes e morreu esfolado
vivo... De entre os sacerdotes franceses, há três cuja comunidade se mantém bem
viva na memória das pessoas, só os conheço pelos nomes chineses: a Neng Mu De
os revolucionários expulsaram-no, mas ele ansiava profundamente poder morrer em
solo chinês. Quando estava a partir, caiu doente e o barco deteve-se em Cantão,
onde ele veio a expirar; E Lao tinha herdado 100.000 francos e havia utilizado
a herança para construir uma réplica da gruta de Lourdes em Pudong [o nome dum
dos bairros da grande metrópole] – um dos seus sobrinhos franceses já nos veio
visitar aqui em Xangai; Xao Jiazhu, que ensinava química e perdera um braço
(3).
10) A situação da
Igreja na China é deveras particular, já que os poderes públicos têm uma
intervenção especialmente activa em relação a ela. O que é que a missa
tradicional lhe evoca do ponto de vista da comunhão com os outros católicos de
todo o mundo e com os do passado? A sua celebração mensal é bem acolhida pelas
autoridades da tutela?
É preciso olhar com um
certo distanciamento. Penso, por exemplo, na época do Imperador Kan Xi
(1664-1723). Ao longo de toda a história da China, o poder teve sempre uma sua
opinião a respeito da Igreja Católica; ora dura ora benevolente, consoante as
épocas, mas, em todo o caso, jamais indiferente. Os que, na época actual, dizem
que o poder, hoje, seria indiferente à Igreja, dizem algo que é falso. Na sua
época, Kan Xi tentou ver na religião católica o que lhe podia ser útil, e temeu
tudo o que podia prejudicar o seu poder. Foi por isso que sempre quis ter ao
seu lado representantes católicos, e os poderes públicos têm sempre a mesma
preocupação: assegurar-se de que não prejudicamos o seu poder terreno. Quando
celebro a missa tradicional, digo para mim mesmo que estou como nos tempos de
Kan Xi: tenho a mesma fé, celebro o mesmo sacrifício, e tenho as mesmas
problemáticas para gerir.
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(1) Capital da
província de Hubei, no centro da China, com cerca de 20 milhões de habitantes.
(2) Aqui poderá haver
uma hesitação quanto à tradução, pois o sacerdote poderia estar a referir-se ao
pano branco que reveste a cama do enfermo.
(3) Quanto a este
terceiro sacerdote, a sua identificação é mais fácil: trata-se do jesuíta
Robert Jacquinot de Besange
(https://fr.wikipedia.org/wiki/Robert_Jacquinot_de_Besange), um verdadeiro
herói cuja acção salvou nada menos que 300.000 pessoas durante a guerra
sino-japonesa de 1937. De notar que o pároco de São José não é originário de
Xangai. Por isso, o que ele conhece da história da própria paróquia vem-lhe do
que ouviu dizer aos próprios paroquianos e à memória destes... enfim, à
comunhão dos santos.