Carta 94 publicada a 6 fevereiro 2019

As novas ordenações: um ritual empobrecido

(Terceira parte do nosso estudo comparativo do ritual em forma extraordinária e do ritual moderno)


Em França, entre 15 e 20% das ordenações de sacerdotes assimiláveis a sacerdotes diocesanos acontecem no âmbito do rito tradicional (1). Estes candidatos ao sacerdócio escolheram a missa que irão celebrar ao longo do seu ministério, pelo que a sua ordenação é conferida em associação a tal escolha e afectação ao rito tradicional, seja em institutos clericais tradicionais seja dentro de certas dioceses. Assim sendo, eles decidem também optar – o que é teológica e espiritualmente coerente – por receber as sagradas ordens dentro daquele mesmo universo litúrgico que será depois o da missa que hão-de celebrar. A este propósito, cumpre dizer, que, de facto, por comparação com o ritual de ordenação tradicional, o ritual da forma ordinária foi alvo de um considerável empobrecimento; mas é normal que tenham feito tal opção, também porque, como ensina São Tomás, o sacerdócio se dirige para a missa como para o seu fim: «Recebei o poder de oferecer um sacrifício a Deus e de celebrar as missas pelos vivos e pelos defuntos», diz o bispo ao que ordenou sacerdote entregando-lhe um cálice e uma patena contendo o pão e o vinho. A uma missa empobrecida do ponto de vista ritual e teológico, especialmente no que respeita à expressão do sacrifício eucarístico, não podia senão corresponder um ritual de ordenação também empobrecido na sua significação.

A questão do sacramento da ordem ficou a cargo do grupo de estudo 20 da Comissão destinada à aplicação da Constituição sobre a sagrada liturgia. A publicação dos novos livros rituais deu-se em 1968, para a ordenação de diáconos, sacerdotes e bispos; e para a instituição dos ministérios (que vieram substituir o subdiaconado e as ordens menores) e admissão ao diaconado e ao presbiterado (2).

 

Mudar só por mudar? 

Muitos dos estudos e discussões então havidas versaram sobre as formas sacramentais, aquelas palavras que permitem que o sacramento seja conferido, juntamente com as matérias sacramentais, os gestos levados a cabo com essa mesma finalidade. Não se compreende por que motivo foi levantada questão da possibilidade de modificar essas formas. Tanto mais, que num documento então relativamente recente, a constituição apostólica Sacramentum ordinis, de 30 de Novembro de 1947, Pio XII, com o intuito de resolver de modo definitivo antigas discussões teológicas, havia determinado qual o gesto (a imposição das mãos) e quais as palavras que, dentro dos prefácios consacratórios da ordenação dos bispos, dos sacerdotes e dos diáconos, realizavam a conferição do sacramento.

Fosse como fosse, o facto era que tudo era preciso mudar na liturgia romana. Ainda assim, conservou-se a forma da ordenação dos diáconos e dos sacerdotes, que praticamente não foram tocadas. Ao contrário, já no que respeita aos bispos, Paulo VI, através da constituição apostólica Pontificalis romani, de 18 de Junho de 1968, veio afastar as palavras identificadas por Pio XII como sendo a forma («Dá ao teu servo a plenitude do teu ministério e, revestido dos paramentos da mais alta das honras, santifica-o derramando sobre ele a unção celeste»), substituindo-as por uma outra forma decantada da Tradição apostólica de Santo Hipólito: «E agora, Senhor, faz descer sobre aquele que escolheste a força que vem de ti, o Espírito que faz os chefes, o Espírito que deste ao teu Filho bem amado, Jesus Cristo, o mesmo que Ele próprio deu aos santos apóstolos, que, em cada lugar, estabeleceram a Igreja como teu santuário, para louvor incessante e glória do teu Nome». Assim, a nova consagração latina aproxima-se da dos patriarcas de Antioquia e de Alexandria. Será ela mais explícita? Não. Menos? Também não. Mas o facto é que mudou, e isso, para quem quer reformar, é por si só um ganho notável.

 

O empobrecimento simbólico da ordenação sacerdotal

Na realidade, houve um grande empobrecimento do conjunto dos rituais das ordenações. Limitar-nos-emos aqui às modificações e omissões no ritual da ordenação sacerdotal. A principal crítica dirigida pelos reformadores ao ritual tradicional das ordenações era o facto de haver nelas uma “sobrecarga”. Pierre Journel, sulpiciano, e um reformador muito activo, que ensinava no Institut Catholique de Paris, na sua contribuição para o manual de liturgia dos anos 60 que dava pelo título de Église en prière (“A Igreja em oração”) (3) alvitrava que o liturgista medieval Durand de Mende – cujo pontifical serviu de base para a Igreja romana – havia introduzido uma profusão de gestos e de palavras, “de um simbolismo artificial”.

Impunha-se, por isso, assim o entendiam, uma cura de emagrecimento simbólico (4):

·         A tradição ou entrega da estola faz-se, na ordenação tradicional, cruzando a mesma sobre o peito do sacerdote, para assim se mostrar que ele está ligado pela obediência ao bispo, enquanto se pronunciam estas palavras: «Recebei o jugo do Senhor, pois este jugo é suave e este fardo é leve». A imposição da casula, cuja parte posterior permanece dobrada, faz-se com estas palavras: «Recebei a veste do sacerdote, que representa a caridade, pois Deus tem o poder de a aumentar na vossa alma e assim perfazer a sua obra». Ao fim da missa, a casula é desdobrada após uma nova imposição das mãos (uma primeira foi feita já, na altura em que o sacramento é conferido), enquanto se pronunciam estas palavras: «Recebei o Espírito Santo; os pecados serão remidos àqueles a quem os remirdes, e retidos àqueles a quem os retiverdes», tudo querendo significar a plenitude dos poderes sacerdotais conferidos.

- No ritual novo, todo este rito é omitido: são outros sacerdotes os que ajudam o novo sacerdote a revestir-se da estola não cruzada e da casula já desdobrada e sem quaisquer palavras especiais.


·         A unção das mãos do sacerdote, na ordenação tradicional, faz-se durante o canto do Veni Creator com o óleo dos catecúmenos, assim se distinguindo da consagração dos bispos, enquanto que no ritual novo se faz com o santo crisma, óleo tradicional para a consagração dos bispos.

·         A “porrecção” (apresentação) ao novo sacerdote dum cálice com vinho misturado com água encimado por uma patena sobre a qual vai deposta uma hóstia, na ordenação tradicional, faz-se com estas palavras, particularmente explícitas: «Recebei o poder de oferecer um sacrifício a Deus e de celebrar as missas pelos vivos e pelos mortos».


A tal ponto esta fórmula é significativa, que por muitos teólogos (5) ela fora considerada como sendo a própria forma do sacramento da ordenação sacerdotal, até que a constituição apostólica de Pio XII veio indicar as palavras que agora deveriam ser consideradas como conferindo a ordem sacerdotal: «Dignai-vos, assim, Pai todo-poderoso, dar aos vossos servos aqui presentes a dignidade do sacerdócio…».

O novo ritual suavizou ao máximo a fórmula da “porrecção”. O bispo, agora, diz apenas: «Recebei a oferenda do povo santo para a apresentar a Deus. Tomai consciência daquilo que fareis, vivei o que realizareis». A expressão, tida por demasiado medieval, que alude ao «poder de oferecer um sacrifício a Deus e de celebrar as missas pelos vivos e pelos mortos», foi censurada.

 

A secularização das sagradas ordens, porque «mais conforme … com a mentalidade dos nossos dias» (Paulo VI)

 Um dos documentos mais revolucionários da reforma litúrgica foi seguramente o motu proprio de Paulo VI Ministeria quaedam, de 15 de Agosto de 1972. A série de sagradas ordens, com as ordens menores do ostiariato, leitorado e exorcistado, e as ordens maiores do subdiaconado, diaconado e presbiterado, é tão antiga quanto a própria liturgia latina de Roma, como se vê numa carta do Papa Cornélio, de 251, em que se fala de sacerdotes, diáconos, subdiáconos, acólitos, exorcistas, leitores e ostiários, lista que se pode encontrar na oração de Sexta-Feira e Sábado Santos do V século.                                                                                                                                                 

Paulo VI, com uma simples assinatura, aboliu cinco das seis ordens tradicionais que conduziam à ordenação sacerdotal (as quatro ordens menores de ostiário, leitor, exorcista e acólito, e a primeira das ordens maiores, o subdiaconado), e o mesmo aconteceu com a tonsura, que as antecedia e juridicamente fazia aceder ao estado clerical. Apenas subsistiu a ordem do diaconado, por meio da qual se passava agora a ser clérigo, e dois ministérios instituídos, os de leitor e de acólito, que já não são ordenações clericais, mas simples mandatos conferidos a leigos que se preparam para o sacerdócio (mas também a outros que não se preparam): «É mais conforme com a realidade das coisas e com a mentalidade dos nossos dias que os ministérios acima referidos já não sejam chamados, doravante, ordens menores, e que a sua colação não se chame “ordenação”, mas “instituição”; clérigos propriamente ditos são, e como tais devem ser considerados, apenas aqueles que receberam o Diaconado.  Deste modo aparecerá com maior nitidez a distinção entre clérigos e leigos, e entre aquilo que é próprio e reservado aos clérigos e aquilo que pode ser confiado aos fiéis leigos» (Ministeria quædam, n. 17). O tributo pago à «mentalidade dos nossos dias» foi bem alto: o desaparecimento do subdiaconado!

Depois, o novo Código de Direito Canónico veio receber este estreitamento do estado clerical (6), ao qual já não se acede mediante a tonsura, após a qual se ascendia através das várias ordens que conduziam enfim até ao sacerdócio, mas apenas com o diaconado. Ora, aquela escala hierárquica mediante a qual os candidatos ao sacerdócio se iam elevando gradualmente rumo ao presbiterado, contribuía vigorosamente – e contribui ainda hoje para quantos a percorrem – para a manifestação da santidade do sacerdote.

Note-se, por fim, que isso vem produzir uma particular inversão no que toca aos acólitos da missa. Na missa tradicional, estes podem ser leigos, mas vêem-se como assimilados a clérigos tonsurados durante o tempo que dura a celebração. Ao invés disso, na missa nova, tendo presente que agora não se faz ingresso no clericato senão com o diaconado, aqueles que acolitam são claramente tidos como leigos, o que contribui para laicizar a celebração. Os diversos serviços litúrgicos prestados durante a missa – leituras, intenções da oração universal, direcção dos cânticos da assembleia, monições e comentários, distribuição da comunhão – são-no por fiéis enquanto leigos, que continuam na condição de leigos. Isto mesmo é ainda confirmado pelo facto de poderem ser tanto homens como mulheres a prestar tais serviços, e as mulheres, segundo o que sabemos até ao dia de hoje, não podem entrar no clericato.

Homens e mulheres … porém, no que toca ao serviço do altar, que é algo que que se mostra sensivelmente mais próximo do ministério sacerdotal, tanto a instrução Liturgicae instaurationes, de 5 de Setembro de 1970, n. 7 (7), como a instrução Inaestimabile donum, de 3 de Abril de 1980, n.18, tinham já lembrado a interdição de o confiar às mulheres. No entanto, a prática de ter meninas ou moças como acólitos difundiu-se cada vez mais, apesar de tudo. Ora, uma resposta da Congregação para o Culto Divino, enviada por carta de 15 de Março de 1994 aos presidentes das conferências episcopais, vinha precisar que o princípio permanecia o mesmo, lembrando que o serviço do altar assegurado por rapazes «permitiu um desenvolvimento encorajador de vocações sacerdotais», mas juntava que caberia a cada bispo, se entendesse ser conveniente, autorizar que tal serviço fosse entregue a moças. Seguindo aquele processo que se tornou habitual depois do concílio, veio a passar-se de um “abuso” à permissão oficial.


***


As deficiências do novo ritual chegam a tal ponto, que alguns seminaristas diocesanos chegaram a considerar receber secretamente as ordens que foram suprimidas pela reforma – as ordens menores e o subdiaconado – antes de serem ordenados sacerdotes segundo a nova forma. A bem dizer, desde o motu proprio Summorum Pontificum, nada impediria do ponto de vista jurídico que um postulante ao sacerdócio pedisse para o receber segundo o Ordo tradicional. Todavia, em o fazendo, um tal seminarista seria seguramente retardado, se não lhe viesse mesmo a ser recusada a ordenação por parte dos superiores.

Como quer que seja, dá-se o caso, em diversos países, que os jovens sacerdotes recém-ordenados segundo o Ordo novo queiram depois celebrar a sua primeira missa (em Portugal, também conhecida como “Missa Nova”, mas aqui no sentido de primeira missa de um novo sacerdote) segundo o rito tradicional. Sinal de que o interesse pela missa tradicional se faz sentir de maneira muito significativa dentro dos seminários diocesanos. Assim, por exemplo, numa grande capital como Paris, este ano, em 2018, os seminaristas pediram para que fosse ministrado um curso de estudos sobre o rito tridentino. O incremento, lento mas constante, da missa tradicional em todo o mundo, logicamente, não pode não se fazer acompanhar por um incremento das ordenações tradicionais. Logicamente, mas também teologicamente, pois, como ensinava São Tomás, «o sacramento da ordem tem por fim a eucaristia – o sacramento dos sacramentos» – Suplemento da Suma Teológica, questão 37, artigo 2, co. (8).

 



1. Em 2017 : 22 ordenações sacerdotais para a missa tradicional; 84 para a nova.

2. De ordinatione diaconi, presbyteri et episcopi (1ª edição típica, 1968 ; 2ª edição típica, 1990) ; De institutione lectorum et acolythorum (instituição nos ministérios; edição típica, 1972).

3. L’Église en prière. Introduction à la liturgie, Desclée, 1961, p. 512-513.

4. Les ordinations – Les institutions aux ministères, Desclée/Mame, 1977.

5. Cf. São Tomás De Aquino, Suplemento à Suma teológica, q. 37, a. 5.

6. Cânone 266 § 1.

7. «De acordo com as regras tradicionais da Igreja, não se permite às mulheres (moças, mulheres casadas, religiosas) que sirvam o sacerdote no altar dentro das igrejas, em casas, comunidades, colégios ou instituições femininas. Porém, permite-se que as mulheres, segundo quanto prescrito pelas normas relativas a tal matéria: proclamem as leituras, etc.»

8. O Suplemento à Suma, embora escrito após a morte de São Tomás, é uma compilação então levada a cabo pelo seu secretário, Frei Reginaldo, a partir de obras anteriores do mestre.