Carta 105 publicada a 18 setembro 2020

O INQUÉRITO ROMANO RELATIVO À MISSA TRADICIONAL REVISITADO

No dia 7 de Março passado, a Congregação para a Doutrina da Fé lançou junto de todos os bispos da Igreja latina um inquérito sobre a aplicação do motu proprio Summorum Pontificum, com o fito de auscultar também quais as necessidades sentidas no âmbito da forma extraordinária do rito romano (veja-se a carta 744 de 4 de Maio de 2020). Muitos foram os que então, mas ainda hoje, se inquietaram e se inquietam a propósito do que se seguirá a uma tal medida. Pedimos, por isso, a Christian Marquant, presidente de “Oremus-Paix Liturgique” que nos desse conta das suas impressões, agora que são volvidos sete meses sobre o lançamento dessa iniciativa.


Paix Liturgique: Na sua opinião, qual o motivo de se ter decidido levar a cabo este inquérito?

Christian Marquant: Por um lado, é notório que, em Roma e no episcopado italiano, existe uma tendência que preferiria que a missa tradicional e, mais ainda, os institutos “Ecclesia Dei” ficassem sob a alçada do direito comum, isto é, que ficassem submetidos, respectivamente, à Congregação para o Culto Divino e à Congregação para os Religiosos (como era conhecida). A resposta do Papa, que sofre tais pressões, foi a resposta clássica de um governo que procura furtar-se à crítica: organizar um inquérito. Para além disso, é também normal que a Santa Sé queira obter mais informações sobre a situação e o desenvolvimento actual no âmbito do universo Summorum Pontificum, e isto fá-lo segundo o método que é habitual em Roma: interroga-se os bispos. O que até então acontecia por ocasião e no decurso das visitas ad limina que os bispos fazem a Roma, país por país, decide-se agora fazer a nível mundial. E é por isso que, no fim de contas, tomo este inquérito como uma boa notícia, na medida que esse deveria obrigar os nossos pastores diocesanos a abandonarem a situação de negociacionismo autístico em que tão amiúde se encerram diante da nossa realidade. Isso, se, pelo menos, responderem objectivamente às questões que lhes foram postas.


Paix Liturgique: E crê que as autoridades vaticanas não conhecem de facto esta realidade?

Christian Marquant: Apenas imperfeitamente, porque apenas se ocupam de uma parte desta realidade. Desde há muito tempo (desde as conversações com Mons. Lefebvre, que fracassaram em 1988, e desde o reinício dessas conversações, a partir de 2000 até às últimas eleições da FSSPX), a atenção das autoridades vaticanas voltou-se exclusivamente para a Fraternidade São Pio X. Para quem não está a par da realidade das coisas, importa dizer que ela, não sendo a totalidade, constitui ainda assim o núcleo essencial do mundo tradicional, conquanto, e isto cada vez mais, ela não seja senão um dos elementos – ainda que importante – do universo ligado à liturgia e ao catecismo tradicionais. Depois, para a Roma pós-conciliar, ela representa também um insucesso simbólico de grande monta, uma pedra no sapato: desde que a Igreja, com o Vaticano II, se abriu ao ecumenismo, não conseguiu fazer reentrar no seu seio qualquer comunidade separada (excepto um certo número de anglicanos); pelo contrário: teve sim de enfrentar uma nova ruptura, a da FSSPX.


Paix Liturgique: Entende que a prioridade dada a este interesse particular é um erro?

Christian Marquant: Não me cabe julgar das prioridades e dos polos de interesse das autoridades romanas. Ainda assim, atrever-me-ia a dizer que interessar-se essencialmente pela questão da Fraternidade São Pio X, para essas mesmas autoridades, tem representado uma falta de profissionalismo, por carecer de uma análise objectiva e duma visão da realidade tal como ela é. Roma acabou por ficar contaminada pela questão da FSSPX, porque esta era a vitrina da oposição ao Concílio, porque, desde 1974, se tornou um reservatório de sacerdotes tradicionais e porque, em 1988, se realizaram as consagrações episcopais. Quanto ao resto do universo tradicional, em 1988, a Santa Sé estabeleceu-lhe uma situação de tolerância (Ecclesia Dei), que teoricamente se veio a tornar uma situação de direito em 2007 (Summorum Pontificum), mas não olha para o fenómeno como ele é na realidade nem para o que ele se vai tornando dia após dia. As conferências episcopais nacionais fizeram ainda pior, interpretando sempre em sentido minimalista as decisões de Roma.


Paix Liturgique: Porquê?

Christian Marquant: Neste plano do episcopado, o que frequentemente se encontra é uma cegueira. Verifico que a maioria dos nossos pastores não dedicaram muita energia a tentar compreender o movimento tradicional e o potencial que ele apresentava. Procuraram simplesmente ostracizá-lo por meio de ataques, e amiúde, é preciso dizê-lo, com retoques de consumado despropósito ou tolice, enquanto continuavam a afirmar a torto e a direito que não havia qualquer problema litúrgico ou catequético, quando mais de 90% dos católicos da Europa ocidental se afastavam da Igreja!...


Paix Liturgique: Mas será que poderiam ter visto as coisas doutra maneira?

Christian Marquant: Certamente que sim. Bastaria abrir os olhos. Desde há três anos que publicamos e expomos qual a situação da liturgia tradicional no conjunto dos continenentes do globo. Damo-nos logo conta de que o universo Summorum Pontificum está em constante desenvolvimento. Hoje, inclusivamente, está mais difundido e é mais importante do que o universo da São Pio X. E os dois juntos, representam na Igreja um conjunto que cada vez menos admite ser ignorado, no meio de uma derrocada do ponto de vista do número de sacerdotes e de religiosos (no Ocidente) como do ponto de vista da doutrina (por todo o lado).


Paix Liturgique: Crê que as proporções desta situação vão aumentar?

Christian Marquant: Com efeito, é o que irá acontecer. Importa notar, em primeiro lugar, que as iniciativas tradicionais no âmbito Summorum Pontificum são hoje muito numerosas – pense-se, em França, na rede de escolas privadas sem contrato com o Estado – e que o seu público vem multiplicar o da liturgia tradicional. O crescimento do número de lugares onde se celebra a missa tradicional foi objecto de uma medição exacta por ocasião dos 10 anos do motu proprio (grosso modo, esse número duplicou). Este crescimento irá continuar. A par disso, se, quando se pensa no universo tradicional, importa que evitemos centrar-nos na FSSPX, por outro lado, ao pensarmos no meio tradicional “oficial”, também convém evitar não ir além das comunidades “Ecclesia Dei”. É bem verdade que, no que toca a sacerdotes e apostolados, elas mostram estar em pleno vigor, mas observamos que o movimento Summorum Pontificum é hoje maioritariamente diocesano e paroquial, o que deixa entrever um futuro desenvolvimento rápido e praticamente ilimitado.


Paix Liturgique: Não haverá aí algum exagero?

Christian Marquant: Lembro que, nos últimos 20 anos, já levámos a cabo mais de 40 sondagens de opinião, não apenas em França, mas nos principais países europeus e, agora, em todos os continentes... Ora bem, os resultados são muito significativos, indicando que, por todo o lado, quaisquer que sejam as regiões analisadas ou a cultura dominante aí presente, deparamos com pelo menos 30% dos católicos praticantes que desejam viver a sua fé católica ao ritmo da liturgia tradicional. Já não se trata, por conseguinte, de umas quantas ilhotas de nostálgicos que possamos apontar e contar pelos dedos: estes 30% de fiéis representam hoje centenas de milhões de católicos que, decididamente, não estão satisfeitos com a liturgia que se lhes apresenta.


Paix Liturgique: Trata-se de uma novidade?

Christian Marquant: De todo! O ribombar mediático pós-conciliar que nos foi matraqueando mascarou a realidade e quis fazer crer que todos os católicos eram fervorosos apoiantes das novidades: ora, isso é falso, e sempre foi falso! Mas aqui, como em tantos outros domínios, as elites, e assim, as autoridades diocesanas, não quiseram dar ouvidos, e, hoje, deparam com esta realidade diante dos olhos e não a compreendem.


Paix Liturgique: É por isso, então, que se alegra com este inquérito romano enviado a todos os bispos do mundo?

Christian Marquant: Há pouco, comecei por falar dos bispos italianos hostis ao desenvolvimento da liturgia tradicional. Pois eles aperceberam-se tão bem do perigo deste inquérito – cujos resultados serão tratados pelo pessoal do departamento da Congregação para a Doutrina da Fé encarregue da liturgia tradicional –, que, por própria iniciativa, decidiram modificar o método ditado por Roma: os bispos italianos receberam da sua Conferência Episcopal a ordem de enviar as suas respostas, não à Congregação para a Doutrina da Fé, mas sim à Conferência Episcopal Italiana, encarregando-se ela própria de os tratar, de fazer uma síntese e de os enviar à Santa Sé.

Não podendo ser ingénuo (sei bem que os opositores da liturgia tradicional continuarão a fazer de tudo contra ela), vejo nisto a prova de que a verdade incomoda. Ora, esta verdade é o peso que tem o universo Summorum Pontificum, enquanto o mesmo representa o descontentamento duma fracção muito considerável dos católicos de todos os países do mundo.


Paix Liturgique: Crê, portanto, que este estado de coisas incomoda? 

Christian Marquant: É o que acho, e dou-lhe uma razão: dias atrás, o nosso amigo Marco Sgroi, presidente da Coordenação Summorum Pontificum de Itália, anunciava-nos que, em 2019, ou seja, no espaço de apenas um ano, o número dos lugares onde se celebra a liturgia tradicional em Itália, passara de 129 para 134, ou seja, mais 5 novos lugares de culto, um crescimento de 4% no âmbito de 77 das 222 dioceses latinas italianas, e que, em Itália, os pedidos de celebração são cada vez mais numerosos (pelo menos, trinta pedidos conhecidos, situados na maior parte em dioceses onde, actualmente, a liturgia tradicional não é celebrada); e sabemos que nesse país, como em muitos outros, se esteve a martelar anos a fio que o “problema tradicional era um problema franco-francês”... Bem se pode compreender que, hoje, o episcopado italiano esteja inquieto como outrora foi o caso do episcopado francês.


Paix Liturgique: Parece, então, que está optimista?

Christian Marquant: Por natureza e por esperança crsitã. No caso vertente, contra ventos e marés, o facto é que já não será mais possível negar o desenvolvimento da liturgia tradicional. Isto, se quisermos ser honestos. Mas, nem por isso, desaparecerá a má fé, também o sabemos. Haverá quem continuará a afirmar, contra toda a réstea de bom senso, que este movimento e os seus fiéis não existem. Na Carta 744 da “Paix Liturgique”, relatava-se que o mais virulento dos inimigos da liturgia tridentina, o Professor Andrea Grillo, que ensina na Pontifícia Universidade de Santo Anselmo, havia lançado uma petição a 1 de Abril de 2020 em que se pedia que esta liturgia cessasse de gozar de um estatuto de excepção e que fosse plenamente submetida aos bispos diocesanos e à Congregação para o Culto Divino. Dito doutro modo, o escopo dos inimigos da missa tradicional é que ela fique sujeita aos bispos, e, por fim, seja aniquilada.


Paix Liturgique: E isso não será possível?

Christian Marquant: Não! Primeiro, porque a ligação à missa tradicional é como que consubstancial à fé católica, na medida em que se trata de uma ligação a uma lex orandi muito pura da Igreja romana. A Igreja romana, e por conseguinte a sua fé litúrgica, têm palavras de vida eterna. Não Andrea Grillo.

Muitas foram já as tentativas para sufocar esta liturgia e tudo o que ela traz consigo, já lá vão 50 anos, e todas se demonstraram infrutíferas. Mais o serão amanhã, com o passar do tempo, em virtude do risco de se ver deflagrar uma guerra litúrgica bem mais intensa do que a dos anos 70, num corpo eclesiástico hoje extremamente fragilizado... Alguém imagina o Papa Francisco que, amanhã, lança uma cruzada clerical – horresco referens – contra os que amam o silêncio e a piedade tradicional? Para mim, creio ser impensável, e, sobretudo, impossível.


Paix Liturgique: Se assim é, o que se pode esperar deste inquérito?

Christian Marquant: Não sei, mas, assim o espero, poderá vir a ajudar a que se tome consciênciada da amplitude do fenómeno tradicional. É que estou persuadido de que, dentro de cinquenta anos, a maior parte dos sacerdotes diocesanos ou religiosos já serão, pelo menos, algo bi-ritualistas, e a liturgia tradicional será reconhecida por todos, tanto por fiéis como por sacerdotes, como um tesouro espiritual e teológico da Igreja romana.