Carta 11 publicada a 11 novembro 2010

Final da entrevista com Senhor Dom Atanásio Schneider

TERCEIRA PARTE – VISTO A PARTIR DA KARAGANDA

Aqui fica o terceiro e último segmento da entrevista exclusiva que o Senhor Dom Atanásio Schneider, bispo auxiliar de Karaganda, no Cazaquistão, concedeu à Paix Liturgique. Depois de, num primeiro momento, ter abordado o tema da comunhão, para, num segundo momento, passar a expor os seus pontos de vista acerca do mútuo enriquecimento das duas formas do rito romano, o Senhor Dom Atanásio vai hoje deixar-nos o seu olhar de um cristão do Oriente a propósito das questões relativas ao Ofertório tradicional, à formação dos sacerdotes e à inculturação.


8) Em Setembro de 2001, numa mensagem dirigida à sessão plenária da Congregação para o Culto Divino (*), João Paulo II afirmava que: «No Missal Romano, dito de São Pio V, como em diversas liturgias orientais, encontramos orações belíssimas com as quais o sacerdote exprime o mais profundo sentimento de humildade e de reverência em face dos mistérios sagrados: estas revelam a própria substância de toda a liturgia.» Será que podemos dizer que o Ofertório tridentino é uma dessas orações? Ou, ao contrário, deveremos considerar que a sua desaparição é um dos pontos positivos da reforma litúrgica, como é defendido por numerosos “bugninianos”, entre os quais Dom Raffin, que, numa sua contribuição para o livro “Inquérito sobre o Espírito da Liturgia”, publicado em “L’Homme Nouveau”, em 2003, veio declarar: «estou contente com a desaparição das orações do “ofertório”, em relação às quais estou em condições de provar o respectivo carácter heteróclito.»

AS: Em toda a história da liturgia romana, mas também nas liturgias orientais, o Ofertório sempre esteve ligado à realização do sacrifício do Gólgota. Não se tratava de preparar a Ceia, mas antes o sacrifício eucarístico que tem por fruto o banquete da comunhão eucarística. O que se oferece, oferece-se para o sacrifício da Cruz: é aquilo que poderíamos chamar de “antecipação simbólica”.

No Ofertório temos o eco de todos os sacrifícios do Antigo Testamento, desde os grandes ofertórios de Melquisedeque e de Abel. É uma progressão contínua até ao sacrifício do Gólgota. Por si só, esta visão bíblica justifica inteiramente o ofertório tradicional, para já não falarmos dos ritos orientais, que são ainda mais solenes na maneira como antecipam o Mistério da Cruz.

Da mesma maneira que para Santo Agostinho «o Novo Testamento estava escondido no Antigo Testamento», também nós poderíamos dizer que a Consagração está escondida no Ofertório.

Parece-me, pois, que o Ofertório tradicional poderá ser tudo menos heteróclito. Bem pelo contrário, o que eu diria é que ele é um puro resultado da lógica bíblica aplicada à história da Redenção.


9) Para uma melhor prática da liturgia, não acha que seria altura de rever a formação dada nos seminários? Se pensarmos na França, poderíamos aludir, entre outras coisas, ao ensino do latim, que, apesar de continuar a ser a língua sagrada da Igreja, já quase não é exercitado, e ainda o modo de tratar a celebração da liturgia ordinária, que frequentemente é deixada à inspiração de cada um … para já não falar também da possibilidade de descobrir a liturgia tradicional, que quase nunca se vê oferecida aos seminaristas. Sem pedirmos ao Senhor Dom Atanásio um juízo sobre o que se faz em França, será que nos poderia dizer como é que tudo isso é tratado no interior do seminário de Karaganda, o único seminário católico da Ásia central?

AS: Com efeito, a situação do ensino do latim por entre os seminaristas é preocupante em todo o mundo, e não apenas em França! É um estado de coisas que não só vai contra a vontade da Igreja e do Santo Padre, mas também contra a do concílio Vaticano II. A Constituição “Sacrosanctum concilium”, dedicada à sagrada liturgia, estipulava em termos claros que “O uso da língua latina, ressalvado o direito particular, deverá ser mantido nos ritos latinos" Na sua exortação apostólica “Sacramentum caritatis”, de Fevereiro de 2007, Bento XVI pedia “que os futuros sacerdotes, desde os tempos do seminário, sejam preparados para compreenderem e para celebrarem a Missa em latim, bem como para fazerem uso do canto gregoriano; não se deve descuidar a possibilidade de educar os próprios fiéis para ao conhecimento das orações mais comuns em latim, assim como para o canto gregoriano em certas partes da liturgia”.

É preciso que os sacerdotes tenham à-vontade no uso do latim. Penso que a Santa Missa (segundo a forma ordinária) deveria ser celebrada e ensinada em latim em todos os seminários, e, periodicamente, também na forma extraordinária. Isso seria de grande proveito para a própria dignidade da liturgia.

Em Karaganda, temos uma quinzena de seminaristas (para uma população de 150 000 católicos em todo o país) e procuramos que o latim ocupe um lugar importante no ciclo de estudos.


10) Nos países onde o catolicismo é apenas uma religião minoritária, ou até quando a sua expressão não é mais do que marginal, como é o caso do Cazaquistão (2% da população), o emprego da língua comum e da liturgia moderna é frequentemente apresentado como uma vantagem para a “incarnação do Evangelho nas culturas autóctones, e ao mesmo tempo” para “a inserção destas culturas na vida da Igreja”, de acordo com a definição de inculturação dada por João Paulo II na encíclica “Slavorum apostoli” (VI, 2). Tendo em conta a vossa experiência, poderia dizer-nos se a liturgia romana em latim e com o canto gregoriano — pouco importando neste caso que se trate da forma ordinária ou daquela extraordinária — representa, ou não, um obstáculo à inculturação do catolicismo na Ásia?

AS: É preciso que tenha presente que o contexto da Ásia Central é muito diferente daquele que conhece no continente europeu. É impossível deixar de sublinhar a herança deixada por 70 anos de regime soviético ou o peso que a presença muçulmana exerce na sociedade. E, ao mesmo tempo, está também sempre presente o elemento eslavo ortodoxo, assim como subsiste igualmente a dimensão bizantina. Culturalmente, podemos pois dizer que estamos longe do mundo latino.

Ainda que sejamos de rito romano, hoje em dia e neste contexto particular, celebrar a liturgia totalmente em língua latina seria algo difícil de realizar. Em contrapartida, poderíamos imaginar o uso duma língua eslava como língua litúrgica para, depois, introduzir progressivamente o latim nalgumas partes da liturgia.

Há dois precedentes históricos nesse sentido:

- No século IX, no seguimento do trabalho levado a cabo por Cirilo e Metódio, a Igreja autorizou o uso da língua eslava na Dalmácia, na Boémia e na Morávia, e esta disposição resistiu até ao concílio Vaticano II no que toca à Dalmácia, a actual Croácia.

- Em 1949, Pio XII emitiu um indulto permitindo aos sacerdotes da China que celebrassem a Missa em chinês, à excepção do Cânon, que deveria ser mantido em latim.

Estes dois precedentes históricos relativos ao rito romano são conhecidos no Cazaquistão (o país faz fronteira com a China) e poderiam servir de inspiração para uma iniciativa da Santa Sé em favor do uso da língua russa para a forma extraordinária do rito romano.

(*) http://www.unavox.it/doc67.htm