Carta 14 publicada a 26 fevereiro 2011

"Em nome do espírito do Motu Proprio" - o grito de socorro dos seminaristas de Milão

Há dez dias, começou a reinar uma grande inquietude por entre os fiéis e os sacerdotes ligados à celebração e à difusão da forma extraordinária do rito romano acerca da publicação, que se diz próxima, da instrução que enquadrará o modo de aplicação do Motu Proprio Summorum Pontificum. Blogs e meios de comunicação de todo o mundo, “tradis” e não, mostram esta preocupação e não surgiu qualquer desmentido credível que a tivesse vindo acalmar, a tal ponto que foi laçado um apelo internacional em defesa do Motu Proprio. Seja ou não fundada — e veremos a seguir que, infelizmente, o é —, em todo o caso, esta viva reacção vem dar testemunho da profunda ligação dos católicos tradicionais ao gesto pacificador empreendido em 2007 pelo Sumo Pontífice.

Esta semana, vimos propor-vos uma das facetas desta reacção, a carta dos seminaristas da diocese de Milão que estão inquietos com o anúncio de que os ritos latinos não romanos, como o rito ambrosiano que vigora em Milão, não estariam incluídos no Motu Proprio de Bento XVI.


I – O DOCUMENTO

Carta aberta de 19 de Fevereiro de 2001

Beatíssimo Padre,
Caros leitores,

Queremos o Motu Proprio em Milão, e queremo-lo também aqui, no Seminário, onde, em vez dele, nos impostas liturgias protestantizantes modelo “BOSE”.

Santo Padre, Eminências, Excelências, fiéis todos, venham ver como se celebra no Seminário de Milão, venham ver as decorações litúrgicas da nossa capela, a pretensa estátua de Nossa Senhora (uma mulher meia despida sentada em frente do Sacrário, em atitude sensual!). Venham ver e já vão perceber. Bem compreendemos que os tempos mudam, que a história muda, mas o coração das pessoas tem necessidade das respostas de sempre, de uma Verdade que é sempre igual: Jesus Cristo, o mesmo de ontem e de hoje.

Porque será que, como católicos e como seminaristas, não podemos ser formados de modo a tomarmos conhecimento da Tradição bimilenar da Igreja? Não pedimos que seja imposto o rito antigo. Está-nos bem que fique como forma extraordinária. Mas porque é que não o podemos estudar oficialmente, e de quando em vez até mesmo celebrá-lo e rezar de acordo com ele, em vez de o fazer às escondidas, clandestinamente, sem que o saibam o Reitor e o Padre Espiritual, de noite, nos nossos quartos, como se isso fosse um acto de desobediência à Igreja?

O que nos é imposto é, ao contrário, uma sensibilidade litúrgica criativa inventada pela comunidade de Bose, que não é a nossa vocação, não é o motivo pelo qual escolhemos seguir o Senhor na Igreja Católica. Não queremos ser padres para viver à maneira Bose nem para celebrar ritos sincretistas. Quem tiver essa sensibilidade é completamente livre de ir para Bose.

Queremos poder cantar o Tantum Ergo em latim (o que, em regra, é probido!), e não apenas os cânones de Taizé em inglês e espanhol.

Será possível que quem assim pensa tenha de viver às escondidas, calando e fingindo que tudo vai bem?

Que mal há, é o que nós perguntamos, em querer ser católicos do terceiro milénio, evangelizadores do nosso tempo e, ao mesmo tempo, poder rezar como sempre rezaram os sacerdotes e os leigos da Igreja ambrosiana CATÓLICA?

Voltamos a dizê-lo: não queremos absolutizar, não queremos um regresso absoluto ao rito do Vetus Ordo, mas queremos sim um respeito verdadeiro, autêntico, não ideológico, para com a Igreja, a Sua história, a Sua Tradição, aquela Sua riqueza espiritual que pode nutrir verdadeiramente uma alma que queira conformar-se a Cristo Sacerdote.

Agradecemos a todos que se lembrem nas vossas orações de todos aqueles que, como nós, procuram seguir o Senhor trilhando o sulco da Sua Igreja, com as nossas dificuldades e limitações, mas iluminados pela graça esplendorosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Auguramo-nos de que este nosso humilde apelo possa chegar ao coração de quem ama a Igreja e de quem quer servir os seus irmãos nas coisas que dizem respeito a Deus.

Santo Ambrósio e São Carlos Borromeu, intercedei por nós.

Em Jesus e Maria,

Alguns Seminaristas de Sveso
(Arquidiocese Metropolita de Milão)


II – OS NOSSOS COMENTÁRIOS

1) Podemos observar que esta carta de seminaristas — que, aliás, não são tradicionalistas — ultrapassa em larga medida o problema do documento de interpretação do Motu Proprio: ela prende-se directa e expressamente com a questão da ideologia litúrgica do grande seminário de uma das maiores dioceses da Cristandade. E a respeito de certas coisas, vimos a descobrir que, em 2011, estamos exactamente no mesmo ponto em que estávamos em 1970! O que mudou é que há agora muitos seminaristas que resistem e protestam. Em Itália, mas também em França e em Portugal, há-os mesmo que chegam a dizê-lo em alta voz. Pois se há lugares na Igreja onde a Inquisição ainda funciona, é precisamente nos seminários, onde os candidatos ao sacerdócio são julgados muito mais pelas suas ideias do que pela sua moralidade. E isso mostra bem até que ponto esta carta é corajosa e especialmente tocante.

2) Não nos esqueçamos de que a liturgia tradicional e quantos a ela estão ligados saem agora de 40 anos de humilhações e ostracismo, e isso pode explicar uma certa prontidão da reacção, por vezes viva, às injustiças sofridas. No presente caso, a reacção, a missiva dos seminaristas milaneses, é até das mais comedidas. O que estes futuros sacerdotes — e nós rezamos por eles! — vêm manifestar, mais do que cólera ou as suas exigências, é um profundo mal-estar. O mal-estar de quem tem de dissimular as suas convicções quando está à luz do dia, para apenas as poder expressar na calada da noite. É bem certo que grandes santos e mártires houve que nasceram da perseguição e das trevas, mas é legítimo que nos escandalizemos se é logo aqui que a perseguição e as trevas se espraiam e vêm provocar as suas feridas, isto é, nem mais nem menos que no interior de um seminário católico!

3) Uma palavra sobre “Bose”. Esta comunidade religiosa, nascida no dia em que se encerrava o concílio Vaticano II, junta homens e mulheres celibatários de diferentes confissões cristãs para que possam «viver o Evangelho com radicalidade» (Regra da Comunidade 3.5). O seu fundador e superior, o Irmão Enzo Bianchi, é a coqueluche dos meios de comunicação italianos, nos quais o vemos sempre pronto a dar a sua opinião, frequentemente de maneira radical! Não é raro fazerem-se analogias entre Bose e Taizé, e não nos surpreende que os seminaristas milaneses se queixem por terem de aguentar que se lhes inflija a liturgia Bose e, ainda por cima, o repertório completo de Taizé.

4) Historicamente, a diocese de Milão era considerada como a “primeira” arquidiocese do mundo, e é ainda hoje uma das três primeiras em número de católicos: quase 5 milhões. Milão tem por patrono Santo Ambrósio, um dos quatro Grandes Doutores da Igreja (juntamente com São Jerónimo, Santo Agostinho e São Gregório), e foi ele a dar o nome à magnífica liturgia latina que aí se celebrou até à reforma de Paulo VI: o rito ambrosiano. O outro patrono da cidade é São Carlos Borromeu, grande prelado da Contra-Reforma, que Pio XI deu por protector aos … seminaristas.

5) Por fim, esta carta coloca ainda o problema das minorias na Igreja: qual é o lugar, qual a liberdade, qual o respeito pelos fiéis, pelos sacerdotes e, aqui, pelos seminaristas que, conquanto permaneçam fiéis ao Magistério, não se reconhecem nas orientações dominantes da respectiva diocese ou conferência episcopal?