Carta 44 publicada a 28 novembro 2013

ACTUALIDADE DE JEAN MADIRAN: SANTO PADRE, DEVOLVEI-NOS A ESCRITURA!


“Deixai-vos mover pelo desassossego espiritual dos vosso filhinhos: devolvei-lhes, Santo Padre, devolvei-lhes a missa católica, o catecismo romano, a versão e a interpretação tradicionais da Escritura. Se não o fizerdes neste mundo, eles vo-lo reclamarão na eternidade…”

Jean Madiran, Carta a Paulo VI


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Em 1972, ano em que Paulo VI denuncia o “fumo de Satanás” que se espalha no interior da Igreja, o jornalista Jean Madiran dirigia ao Santo Padre uma carta aberta vibrante em que lhe suplicava que devolvesse aos fiéis “a Escritura, o catecismo e a missa”.

Volvidos 41 anos depois desse famoso texto, a Paix Liturgique deseja agora prestar a sua homenagem a este grande defensor da integridade da fé católica que Deus chamou para junto de Si no Verão passado, e fá-lo-emos analisando justamente esta sua célebre carta. Começaremos pela questão da Escritura e da tradução em língua vernácula das verdades da fé, questão levantada pela primeira vez em 1965, aquando da publicação na primeira página de “La France Catholique” de um artigo de Étienne Gilson intitulado “Serei eu cismático?”. Neste artigo, o grande filósofo e medievalista interrogava-se sobre a defeituosa tradução francesa do Credo, na qual “consubstantialem patri” passava a ser “da mesma natureza do Pai”, assim se deixando, segundo ele, de “afirmar a unicidade da Trindade”.



I –  BULIR COM A ESCITURA É PÔR A FÉ EM RISCO


Apesar da publicação em 2001 de “Liturgiam authenticam”, a quinta instrução promulgada pela Santa Sé com vista à correcta aplicação da Constituição sobre a Santa Liturgia do Concílio Vaticano II (“Sacrosanctum Concilium”), 50 anos depois da interrogação lançada por Étienne Gilson, a questão da tradução em língua vernácula dos textos litúrgicos continua a pôr-se. Pelo menos no que toca ao francês (mas as versões portuguesas também podem suscitar queixas).

De facto, desde 2001-2002 que todas as comissões litúrgicas foram chamadas a preparar uma actualização dos missais de acordo com a terceira edição típica (edição latina de referência). Ora, já lá vão dez anos e ainda estamos à espera da tradução francesa... Já a tradução para Portugal é a de 1992, que, de facto, apresentando ainda falhas, elas parecem ser menos relevantes do que outras (“que nos reuniu no amor de Cristo”; “Ele está no meio de nós”; “é nosso dever e nossa salvação”; “por todos”; “serei salvo”; simplificações quanto a certas expressões do sagrado e da majestade divina), mas quanto à versão em língua portuguesa para o Brasil, essa parece estar agora a concluir-se por fim, ao cabo de seis anos (apresentando a actual iguais problemas aos referidos e outros ainda: “irmãos e irmãs”; “nosso sacrifício”; “suas mãos”; supressão de “santo Anjo”, a tradução do “Unde memores”; certas omissões e aligeiramentos, por exemplo, quando se trata de evocar a noção de sacrifício…) [1].

No entanto, em 1969, bastaram uns escassos oito meses para publicar o Missal de Paulo VI em francês. Promulgado na Quinta-Feira Santa, 3 de Abril, em Roma, ele viria ser introduzido nas paróquias do país no 1° domingo de Advento e foi tornado obrigatório a partir de 1 de Janeiro de 1970, vindo assim abolir “de facto” o Missal de São Pio V. E o “melhor” de tudo isto, como frequentemente sublinhava Madiran, foi que a própria edição típica latina só acabou por ser publicada pela Congregação para o Culto Divino no dia 26 de Março de 1970, ou seja, quatro meses após a versão francesa…

Trata-se de um problema sério, já que, como bem ilustram os exemplos do Credo, do Pai-Nosso e do Cânone, a tradução defeituosa de textos sagrados leva frequentemente a uma compreensão errónea das verdades da Fé, e assim à heresia.


a) Era Jacques Maritain, considerado pelos Padres Conciliares um “moderno”, quem empregou o termo “herética” no Memorando que dirigiu a Paulo VI. Do que se tratava era da expressão “consubstantialem Patri” do Credo, traduzida em francês por “da mesma natureza do Pai”: “Sob o pretexto de que a palavra “substância” e, a fortiori, a palavra “consubstancial”, se teriam tornado impossíveis hoje em dia, a tradução francesa da missa, durante o Credo, põe na boca dos fiéis uma fórmula que, em si mesma, é errónea, e que em termos estritos, é herética. Com efeito, ela faz-nos dizer que o Filho, gerado, não criado, é “da mesma natureza do Pai”. Ora, isto é o “homoiousios” dos arianos ou semi-arianos, o que se opõe ao “homoousios” ou “consubstancialis” do Credo de Niceia.”


b) Sobre a questão do Pai-Nosso, muito se escreveu depois que foi introduzida a nova tradução francesa [2], sendo que o ponto teologicamente mais sensível diz respeito à segunda súplica: “et ne nos inducas in tentationem”, que em francês passou a ser “e não nos submetas à tentação”, como se Deus fosse o tentador, ao passo que, desde Orígenes até Santo Agostinho, os Padres da Igreja tinham explicado que o se deveria entender era “não permitas que sejamos induzidos em tentação”. Uma vez mais, é útil recorrer à citação de Maritain: “Ser induzido a usar termos enganadores sem saber que eles são enganadores, é, afinal, o mesmo que ser-se enganado.” Depois de 40 anos no erro, uma nova Bíblia em francês vem agora, por fim, corrigir esta fórmula defeituosa, que agora passa a ler-se assim: “E não nos deixes entrar em tentação.” Desafortunadamente, esta fórmula está destinada, por agora, a ficar do lado de fora das igrejas francesas, já que a Conferência Episcopal Francesa emitiu um comunicado em que veio determinar que: “Por agora, nada muda relativamente à oração do Pai-Nosso, inclusivamente durante a Missa. Poderão vir a ser introduzidas alterações, mas só dentro de alguns anos, por ocasião da entrada em vigor da nova tradução do Missal Romano, a qual está ainda em fase de preparação.”


c) Quanto ao Cânone, depois de anos de luta, Roma está por fim prestes a conseguir que as palavras “pró multis”, pronunciadas pelo sacerdote aquando da consagração do vinho, sejam traduzidas correctamente. Por uma vez, em francês, este ponto não é especialmente sensível, já que a tradução é “pela multidão”, fórmula que foi aceite por Roma, mas em português, inglês, italiano e alemão, a tradução foi de “por todos”, e é isso que Roma quer ver alterado. Em 2002, o Papa Bento XVI, que sobre a questão já havia intervindo quando ainda cardeal, julgou ser útil consagrar especificamente a esta questão uma nova carta que foi endereçada à Conferência Episcopal Alemã, no seio da qual as resistências ainda se faziam sentir com força. O facto que estas duas únicas palavras tenham podido alimentar uma disputa tão longa prova bem que por detrás das traduções defeituosas se esconde uma teologia que assume a sua heterodoxia.

Claro está que a questão das traduções dos textos sacros não se limita unicamente a estes exemplos. É assim que o Pe. Michel Viot, um antigo pastor luterano, declara sem hesitação: “Como tantos outros, católicos e não católicos, aquilo com que primeiro travei conhecimento foi a nova missa na sua tradução francesa. E esta tradução é mais que defeituosa! Quando comparado com o texto latino, o texto francês faz todos os esforços para se livrar da dimensão sacrificial da missa, o que não pode agradar senão a um protestante!

Jean Madiran, por seu lado, tomou de mira dois exemplos que não hesitou em citar na sua Carta a Paulo VI: a “blasfémia introduzida na epístola do Domingo de Ramos” e “a afronta libertina que leva a que se proclame liturgicamente, atribuindo-o a São Paulo, que para se viver santamente, é necessário ter mulher” A blasfémia denunciada por Madiran consistia na frase: “Cristo Jesus é a imagem de Deus: mas não quis à força conquistar a igualdade com Deus.” Introduzida pelo novo Leccionário de Paulo VI, esta frase da Epístola aos Filipenses, assim formulada, supunha que Cristo não era igual a Deus, ou seja, que não era Deus. Felizmente, e para isso terá certamente contribuído a carta de Madiran, ela veio a ser corrigida logo na edição sucessiva.



II –  AS NOSSAS REFLEXÕES


1) Esta questão da Escritura é essencial para se poder compreender os abusos e escândalos do pós-Concílio. De facto, as liberdades tomadas nas traduções dos textos da Fé vieram estimular o “espontaneismo” e a improvisação que caracterizaram a pastoral e a liturgia dos anos 70 e 80, e dos quais, tristemente, os efeitos ainda hoje se fazem sentir. Ainda não temos conhecimento da nova tradução da Bíblia, mas queremos crer que o bom Deus faz sempre bem as coisas e que a publicação desta nova tradução no mesmo ano em que morreu Jean Madiran seja uma homenagem prestada ao seu combate.


2) Numa carta datada de Abril 1998, a nossa associação-mãe, “Oremus”, tratava este aspecto amiúde deixado de lado que é a questão das traduções dos textos sagrados: “Se o objectivo de uma tradução é o de permitir compreender melhor, então é porque de algum modo estamos persuadidos de que tudo é explicável. Ora, nós bem sabemos que diante dos mistérios da Fé, isso nem sempre é assim. É por isso que a muitos fiéis parece ser preferível manter o uso da língua latina na celebração dos ofícios religiosos, precisamente porque ela permite que os mistérios da Fé conservem intocado aquele seu aspecto que é incompreensível, sem que se venha impor aos fiéis explicações e traduções que mais não são do que um empobrecimento de uma certa doutrina – que desse modo passa a ser apresentada de uma maneira demasiado profana, demasiado humana.”


3) Esta questão das traduções na Igreja continua a ser de actualidade. O caso do “Youcat” em 2011, o catecismo para os jovens adolescentes, foi uma boa ilustração disso mesmo. Desta feita, a edição original não era em latim, mas sim em alemão, e sucedeu que a difusão desta obra acabou ficando enredada numa série de incidentes e percalços:
– à questão (n° 420) “Um casal cristão pode recorrer aos métodos anticoncepcionais?”, a versão italiana do Youcat aparecia a responder “Sim, um casal cristão pode e deve ser responsável em relação à sua faculdade de poder dar a vida”;
– a versão alemã (e portanto, a original), na sua resposta à questão 382 dava a entender que a Igreja seria favorável à eutanásia passiva;
– e a tradução francesa relativa à questão 136 do Youcat vinha afirmar que “reconhecer a liberdade religiosa significa reconhecer que todas as religiões são iguais”; e para obviar ao erro, os bispos e o próprio editor acabariam por decidir dar para abate os 30.000 exemplares já impressos.


4) Enfim, para provar definitivamente que o apelo de Jean Madiran, “Devolvei-nos a Escritura”, mantém ainda a sua actualidade, deixemos que seja Sua Santidade Bento XVI a concluir, com as palavras da sua carta ao presidente da Conferência Episcopal Alemã, de 14 de Abril de 2012: “Mas, tendo eu de recitar assiduamente as orações litúrgicas em línguas diversas, dou-me conta de que, às vezes, não é possível encontrar quase nada de comum entre as diversas traduções e que, frequentemente, só de longe se consegue reconhecer o texto único que lhes serviu de base.”


[1]  A este propósito, são já públicas e têm sido difundidas estas declarações de um dos responsáveis da primeira tradução feita para o Brasil: “Apresentei em Roma, e a Congregação para o Culto Divino aprovou nossa versão. Nossa sorte é que no momento não havia na Congregação perito em língua portuguesa. Desta forma obtivemos aprovação da simplificação do Cânon Romano, que tinha sido apresentada pelos franceses e negada… Nós simplesmente havíamos copiado a proposta francesa.” (ISNARD, Dom Clemente, O.S.B.. Conferência pronunciada no Encontro dos Liturgistas do Brasil. in A Sagrada Liturgia — 40 anos depois”, estudos da CNBB no. 87. Editora Paulus, São Paulo, 2003). De passagem, diga-se que a tradução portuguesa inicial foi comum a Portugal e ao Brasil no tocante às partes dialogadas e às repostas do povo (a primeira versão comum destas partes recebeu aprovação da Santa Sé a 5 de Setembro de 1969).

[2] Para os leitores interessados, podemos indicar a tese do Rev. Pe. Jean Carmignac : "Recherches sur le Notre Père", 1969, Éd. Letouzey et Ané.