Carta 48 publicada a 24 abril 2014

O LATIM E TUDO MAIS QUE ELE TRAZ CONSIGO


“Peço que os futuros sacerdotes, desde os tempos de seminário, sejam preparados para que poderem compreender e celebrar a missa em latim, bem como para poderem fazer uso de textos latinos e recorrer ao canto gregoriano; nem se há-de negligenciar a possibilidade de educar os próprios fiéis para que conheçam as orações latinas mais comuns e possam cantar em gregoriano certas partes da liturgia.”

Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, n. 62)


No dia 29 de Março de 2014, a coordenação italiana do Summorum Pontificum (CNSP) organizou em Verona uma conferência com o Pe. Roberto Spataro, professor de literatura cristã antiga na Universidade Salesiana de Roma, subordinada ao tema “Summorum Pontificum e a redescoberta da liturgia tradicional: as razões para conhecer e amar a missa tridentina.”

Se nos debruçamos agora sobre este acontecimento é porque o Pe. Spataro, de 48 anos, é um caso representativo desse grupo de sacerdotes cuja vida sacerdotal foi já marcada pelo Motu Proprio Summorum Pontificum de 7 de Julho de 2007. Aliás, logo no dia seguinte à conferência, domingo de Laetare, o Pe. Spataro teve ocasião de celebrar pela primeira vez em público a forma extraordinária do rito romano.





I –  ENCONTRO COM O PE. SPATARO

(À excepção das duas últimas resposta, dadas em exclusivo à nossa edição italiana, as respostas da presente carta constam da entrevista promovida por Ilaria Pisa para o site “Campari e de Maistre)


1) Desde há 50 anos que parece ter-se perdido o estudo do latim na Igreja, incluindo nos seminários: na sua opinião, quais são as razões deste desinteresse? Tratar-se-á da consequência de uma opção orgânica?

Padre Spataro: Mais do que uma opção orgânica e programada, creio que este desinteresse pelo estudo do latim no interior da Igreja é o fruto duma atmosfera cultural que ingenuamente foi no encalço das res novae ao mesmo tempo que se desprezava ao mesmo tempo a tradição. A própria Igreja não resistiu ao desdém pelos studia humanitatis que se foi propagando ao longo de vários decénios tanto na sociedade como no mundo da educação.


2) O abandono quase completo do latim na liturgia, na sequência da reforma do missal romano levado a cabo pelo Papa Paulo VI, corresponde aos votos formulados pelos padres conciliares na Constituição Sacrosanctum Concilium?

Padre Spataro: O missal romano de Paulo VI è em latim! E sobretudo convém lembrar que a Sacrosanctum Concilium veio confirmar o uso do latim na liturgia ao mesmo tempo que preconizava uma utilização razoável e frutuosa das línguas vernáculas em certos momentos. É para muitos evidente que a reforma litúrgica que se seguiu ao concílio não respeitou as suas prescrições.


3) Não acha que o obstáculo linguístico representado hoje em dia pelo latim na liturgia acaba por constituir até um encorajamento no sentido de se levar a cabo o necessário esforço mental que permite, afinal, ao fiel distanciar-se do quotidiano para assim melhor poder penetrar nos sacros mistérios?

Padre Spataro: De facto, há um dado quase universal da fenomenologia das religiões que nos diz que estas repousam sobre o uso de uma língua sagrada, diferente da que se emprega na vida quotidiana, para melhor se poder apreender que aí não se está no registo “ordinário”, mas num outro mundo, do sagrado e do divino. Ora, o latim, em virtude de algumas características que lhe são próprias, é particularmente adequado para exprimir as res sacrae.


4) Não tem o abandono do latim uma dimensão cultural? Não há também o risco de que este abandono produza, ou de que tenha já produzido, um enfraquecimento da unidade e da coesão da Igreja Católica, isto na medida em que a unidade da língua é também sinal da unidade da fé?

Padre Spataro: Tem razão. Quando o Papa João XXIII promulgou a constituição apostólica Veterum Sapientia sobre o valor do latim, sublinhou energicamente a necessidade que tem uma instituição internacional como a Igreja de se apoiar numa língua transnacional. O latim, língua imortal e que não pertence a qualquer povo, corresponde perfeitamente a uma tal exigência.

A perda do uso activo do latim tornou mais difícil as comunicações entre os episcopados locais e a Santa Sé. Além do mais, o conhecimento do latim permite, desde logo e em primeiro lugar aos sacerdotes, que entrem numa espécie de comunhão “diacrónica” com os documentos da fé dos séculos já passados, os documentos que foram formulando a fé da igreja, obras frequentemente da autoria de santos e de insignes doutores, expressão autêntica do sensus fidelium. Sim, sem o latim, bem se pode dizer que há um risco de uma ecleseologia fraca, fragmentada, desprovida de uma ligação à tradição.


5) A maior parte dos grandes teólogos da Igreja elaboraram as suas obras em latim: o abandono do latim no campo da teologia não poderá ter repercussões no plano doutrinal, no sentido de que o recurso a termos impróprios e privados de univocidade favorece o uso de conceitos deficientes e de categorias imprecisas, podendo assim acarretar graves incompreensões dos textos e da tradição teológica da Igreja?

Padre Spataro: Creio que o latim é uma língua muito concisa, o que o leva a não ser prolixo; ora, a prolixidade é um defeito que se nota em muitas das publicações teológicas contemporâneas. O latim educa, além do mais, à precisão na maneira de dar expressão ao pensamento. Com estas suas qualidades de sobriedade e precisão, o latim consegue evitar muitos conflitos na interpretação dos textos.


6) No dia 30 de Março, domingo de Laetare, o Sr. Padre irá celebrar em Verona na forma extraordinária do rito romano, que muitos chamam “a missa em latim”. Poderia dizer-nos quando é que a descobriu e o que é o levou a celebrá-la?

Padre Spataro: Desde a minha juventude que sempre me intrigou a história da Fraternidade de São Pio X. O amor desta comunidade pela antiga missa era algo que me chamava a atenção. Depois do Motu Proprio Summorum Pontificum, dediquei-me a aprofundar o tema, incluindo a riqueza doutrinal deste rito.

Em 2010, vivia eu em Jerusalém e uma comunidade religiosa feminina convidou-me para celebrar a Santa Missa de São Pio V. Desde então que, sempre que se dá uma ocasião, é com alegria celebro usando o Missal de 1962, que é um tesouro de autêntica teologia e de profunda espiritualidade. Isso ajuda-me a tornar-me melhor, e Deus sabe que bem preciso! Além disso, e sobretudo, ela é um alimento muito sólido para aumentar a acção de graças na vida dos fiéis. Não é essa a acção pastoral fundamental à qual somos chamados?


7) Como professor de latim e sacerdote que celebra in utroque usu, em ambas as formas, que conselho deixaria aos sacerdotes e aos fiéis que se sentem atraídos pela liturgia tradicional em virtude da sua maior sacralidade e da centralidade do mistério eucarístico que nela se nota, mas que se sentem retraídos pela própria ignorância do latim?

Padre Spataro: Em primeiro lugar, gostaria de sublinhar que o uso do latim é um dos elementos essenciais do rito tridentino, que, pondo a tónica sobre a santidade da acção litúrgica, valoriza o emprego de uma linguagem sagrada, como acabámos de ver. Se me pede um conselho, começaria por distinguir entre sacerdotes e fiéis.

Aos fiéis que não têm tempo de se dedicar ao estudo do latim recomendaria que utilizassem sistematicamente os missais bilingues, coisa que muitos já fazem. Com o passar do tempo, graças ao confronto entre o texto latino e o da própria língua, e com um pouco de catequese litúrgica, já ficarão em condições de apreciar a língua própria do Ordo Missae.

Já os sacerdotes, convidá-los-ia vivamente a estudarem latim, não apenas para celebrar digne et competenter, mas também para melhor ficarem impregnados de toda a tradição teológica e espiritual expressa em língua latina e de que a missa tridentina é um fruto de excelência. Com o consentimento dos respectivos Ordinários, eles poderiam dedicar-se ao estudo do latim por um período que lhes permitisse ficarem suficientemente a par: com um método apropriado e professores competentes, seis meses chegam bem para se conseguir resultados mais do que satisfatórios.



II –  AS REFLEXÕES DA PAIX LITURGIQUE


1) Desejado por João XXIII, o Pontifício Instituto Superior para a Latinidade, onde ensina o Padre Spataro, é para o estudo do latim um pouco o que o Biblicum é para o estudo da Sagrada Escritura. Que um professor desta universidade, e para além do mais, secretário da Pontifícia Academia Latinitas, criada por Bento XVI em 2012, se pronuncie de modo assim tão livre sobre o valor que ele próprio dá à liturgia tradicional é a prova de que os frutos do Motu Proprio de Bento XVI continuam a manifestar-se com o passar dos anos.


2) Acaso o latim não mostra que a Igreja é supranacional? Cabe aqui aliás lembrar o que era salientado por Bento XVI: “Para melhor exprimir a unidade e a universalidade da Igreja, gostaria de recomendar o que foi sugerido pelo Sínodo doa Bispos, de acordo com as directivas do Concílio Vaticano II (Sacrosanctum Concilium, n. 36 e 54): à excepção das leituras, da homilia e da oração dos fiéis, é conveniente que as celebrações [as que têm lugar por ocasião de encontros internacionais] sejam em língua latina; e, por conseguinte, que sejam recitadas em latim as orações mais comuns da tradição da Igreja e, eventualmente, que sejam ainda executadas peças de canto gregoriano.” (Sacramentum caritatis n. 62)


3) A entrevista com o Padre Spataro não tolhe que para alguns sacerdotes, como para certos fiéis, o latim possa parecer um “obstáculo”. Já na nossa carta 382, propúnhamos uma resposta para esta questão traduzindo uma reflexão publicada pelo semanário dos Franciscanos da Imaculada (rezemos por eles!): “Uma das objecções mais frequentes à difusão da liturgia em latim é o fraco conhecimento da língua latina tanto entre os fiéis como entre o clero. Contudo, quando se chega a compreender que, na liturgia, há uma comunicação que vai além da linguagem e que faz antes apelo ao sentido do sagrado dos participantes, é fácil aquela objecção cair por terra. A liturgia é, de facto, um lugar de comunicação do sobrenatural, do nosso encontro com Cristo sofredor através da Imaculada. Trata-se de um encontro com os anjos da guarda e com os santos. Um encontro que tem lugar no Paraíso. Mais do que ser latinista, o que conta para se poder participar na liturgia tradicional é a disposição da nossa alma para se santificar.” Acrescentemos ainda, cum grano salis, que muitos jovens trauteiam canções em inglês sem nada compreenderem da letra: na missa, pelo menos, os fiéis têm a possibilidade de seguir a tradução pelo missal.


4) O Padre Spataro tem também ideia de que frequentemente o latim consegue também atrair muitos estudantes… na China! Mas o mesmo também acontece na Alemanha e nos Estados Unidos, onde há vários cursos na internet (*). Sabemos, no entanto, que na maioria dos países católicos, o ensino do latim nas escolas é algo de cada vez mais residual. Sobre este ponto, cumpre ser muito lúcido: toda e qualquer a restauração litúrgica terá de se embater com este problema cultural inevitável. Muitos fiéis e até mesmo um grande número de sacerdotes, mesmo com a melhor vontade do mundo, não têm sequer as bases mais elementares da língua de Virgílio. Para que o latim volte a ser o que de facto é, a língua da Igreja latina, será necessário que, em primeiro lugar, o ensino do mesmo ministrado nos seminários seja suficientemente consequente para compensar o atraso com que chegam ao seminário os futuros sacerdotes. O que, infelizmente, não é o que se vê hoje em dia.


(*) Citemos a Academy of Classical languages, cujo curso de latim está a cargo de um professor do seminário da Fraternidade de São Pedro de Denton (Nebraska).