Carta 53 publicada a 10 outubro 2014

UM SACERDOTE QUE TEM NO CORAÇÃO A PAZ LITÚRGICA

UM TESTEMUNHO EXEMPLAR NA EXPECTATIVA DA PRÓXIMA PEREGRINAÇÃO “SUMMORUM PONTIFICUM”

A nossa Carta deste mês retoma a entrevista concedida pelo pároco de uma paróquia de Oaklahoma, o Pe.  Timothy Davison, a Alberto Carosa, o correspondente em Roma de Catholic World Report. O Pe.  Timothy Davison, que celebra a forma extraordinária há menos de dois anos, participará na próxima peregrinação “Summorum Pontificum”, levando consigo um grupo de peregrinos.

Que sejam três cardeais dos mais destacados a celebrar as três missas pontificais em forma extraordinária previstas para a próxima peregrinação do povo “Summorum Pontificum”, é algo que em si mesmo nada deveria ter de surpreendente. A saber: o Cardeal Pell na paróquia pessoal da Trinità dei Pellegrini, sexta-feira, 24 de Outubro; o Cardeal Burke, a 25 de Outubro, na Basílica de São Pedro; e o Cardeal Brandmüller, no domingo, 26, no mosteiro das beneditinas de Núrcia, por ocasião da festa de Cristo-Rei. Vários vaticanistas, entre os quais Sandro Magister (ver aqui) apareceram a sublinhar a importância da participação de um dos cardeais mais destacados da “nova” Cúria do Papa Francisco, o Cardeal Pell, Prefeito do recém-criado Secretariado para a Economia, que abrirá as celebrações.

De facto, o antigo arcebispo de Melbourne – que, no debate prévio ao Sínodo deste mês, não teme u tomar posição em favor da indissolubilidade do matrimónio – sempre se mostrou acolhedor em relação à liturgia tradicional, que de vez em quando também celebra. Foi aliás a afeição que tem pela federação internacional Juventutem, associação internacional de jovens ligados à missa tradicional, que o levou a aceitar celebrar a primeira missa da peregrinação, a qual será oferecida, precisamente, em acção de graças pelo décimo aniversário da Juventutem, que se comemorou este ano. Foi também para se associar a este décimo aniversário que Bento  XVI recebeu a 1 de Setembro passado um dos fundadores da associação, Cosimo Marti, então acompanhado pelo delegado geral da peregrinação “Summorum Pontificum”, Giuseppe Capoccia.

É interessante notar que continua a crescer o número dos sacerdotes que, em todo o mundo anglófono, Prelados incluídos, se sentem atraídos pela liturgia romana tradicional. Pode mesmo dizer-se que os Estados Unidos podem ser vistos como um líder desta retoma da missa tradicional, e é isso justamente que aparece ilustrado na entrevista concedida a Alberto Carosa pelo Pe.  Timothy Davison, pároco da paróquia de São Pedro e Paulo de Tulsa, Oklahoma.




Bento XVI, acompanhado por Cosimo Marti (Juventutem) e Giuseppe Capoccia
(pereginação 'Populus Summorum Pontificum'). 1 de Setembro de 2014.


I  –  ENTREVISTA COM O PE.  TIM


1) Sr. Pe. Davison, por que motivo decidiu juntar-se à terceira peregrinação do povo Summorum Pontificum a Roma?

Pe. Tim: Não é há muito tempo, não chega a um ano e meio, que celebro a missa tradicional e, quando me convidaram para participar na peregrinação como capelão de um grupo de fiéis, tive de reflectir bastante sobre o assunto. Tenho a meu cargo uma paróquia e uma escola e isso representa muito trabalho. Por fim, acabei por decidir que tinha necessidade de ir, que precisava de me encontrar com outras pessoas que fazem a experiência desta liturgia e das suas riquezas. Era já há muito tempo que a liturgia tradicional me atraía e vi que a peregrinação podia ser uma ocasião para partilhar com outras pessoas este acontecimento da vida da Igreja.
Numa palavra: decidi participar para me sentir apoiado e poder apoiar todos os que celebram a liturgia tradicional.


2) O que é que o levou a celebrar a missa tradicional?

Pe. Tim: Durante algum tempo tive como director espiritual um sacerdote beneditino, o Pe.  Mark Kirby (1), conhecido pelo seu livro “Abuse Of The Holy Eucharist Is A Cancer At The Heart Of The Church!” (“O abuso da Santíssima Eucaristia é um cancro no coração da Igreja!”). Ele teve uma grande influência no meu interesse pela liturgia e pela sua história, em particular a liturgia tradicional. Foi através desta influência e da dos monges de um mosteiro da nossa diocese que me veio o desejo de aprender essa liturgia e de a celebrar. Ainda mais porque a minha mãe, que tem 94 anos, me pediu para ter o rito tradicional no seu enterro.
Por tudo isso, acabei pedindo à Fraternidade de São Pedro, que está presente na nossa Diocese, para que me formasse. E foi o que fizeram, e quanto mais aprendia a celebrar, mais me sentia feliz por poder compreender melhor a nossa liturgia católica e a sua tradição. Coisa que não tinha acontecido com o Novus Ordo, que havia celebrado durante os meus primeiros sete anos de sacerdócio.
A descoberta da liturgia tradicional permitiu-me aprofundar a minha compreensão do mistério da Eucaristia e do respeito, da veneração e dos gestos que a devem acompanhar.


3) Que influência teve na via da sua paróquia, a sua escolha de celebrar in utroque usu, isto é, numa como noutra forma do rito romano?

Pe. Tim: Na minha paróquia, há três grupos distintos:
– os anglófonos, para quem se celebra o Novus Ordo em inglês. Trata-se de fiéis sobretudo mais velhos, poucos jovens, e pouco interessados na missa tradicional;
– os hispânicos, que são a maior parte da população da paróquia, mas não se interessam mais do que aqueles pela missa tradicional; 
– e, por fim, os fiéis ligados à forma extraordinária, um grupo vindo de um outro lugar de missa e que já tinha acólitos e uma schola, que era tudo o que me fazia falta para a missa solene que celebramos domingo, às 13  horas.
Por agora, estes grupos quase não se misturam. Alguns fiéis anglófonos e hispânicos já vieram à missa tradicional, mas não se tornaram fixos.


4)  O aparecimento da missa tradicional foi ocasião de divisão? Pergunto, porque esse é um argumento que frequentemente se levanta contra a aplicação do Motu Proprio "Summorum Pontificum".

Pe. Tim: De modo algum. Está tudo muito tranquilo e não há qualquer problema. A única dificuldade é para mim, que tenho de me multiplicar para conseguir dedicar-me às três comunidades. Devo dizer que a forma extraordinária, que se celebra às segundas, sextas e domingos, toma-me muitas energias e tempo, pois pede-me mais trabalho para poder celebrar bem e para me habituar ao calendário, que é diferente do ordinário.


5)  O o que diz o seu bispo?

Pe. Tim: O nosso bispo, Mons.  Edward Slattery, é muito tradicional e, pelo que sei, é um dos raros bispos a celebrar a forma ordinária ad orientem. Mas também celebra com muito agrado a forma extraordinária. É aberto e acolhedor.. No dia 24 de Abril de 2010, ele celebrou uma missa pontifical solene no santuário nacional da Imaculada Conceição, em Washington, por ocasião do quinto aniversário da eleição de Bento  XVI para a Cátedra de São Pedro. Foi a primeira missa pontifical solene a ser aí celebrada desde há mais de 40  anos, diante de 3500  pessoas, entre as quais o Cardeal Baum e uma centena de sacerdotes e seminaristas. Além disso, foi Mons.  Slattery quem trouxe a Fraternidade de São Pedro para a Diocese. Eles têm a seu cargo a paróquia do Preciosíssimo Sangue, que antes se chamava de São Pedro.


6) É, com efeito, uma graça poder ter um bispo assim: poderia contar-nos algo mais sobre a sua personalidade?

Pe. Tim: Tem toda a razão. Mons.  Slattery tem 74  anos e por isso, está a chegar ao fim do seu mandato. É originário da Diocese de Chicago e não é por acaso que esta cidade desempenhou e continua a desempenhar um papel essencial na difusão da forma extraordinária do rito romano. É aí que está a paróquia de São João Câncio, dirigida pelo Cónego Frank Phillips, que fundo dos cónegos de São João Câncio em 1998, uma comunidade religiosa masculina votada à restauração do sentido do sagrado no quadro do ministério paroquial.


7)  Ainda?

Pe. Tim: A missão desta comunidade aparece bem definida na sua divisa: Instaurare Sacra. Os cónegos de São João Câncio têm por particular missão, por exemplo, a formação de sacerdotes desejosos de aprender a celebrar a forma extraordinária. Na minha paróquia, temos um sacerdote mexicano que assim que viu que eu celebrava a forma extraordinária, logo me pediu se também podia aprender. Enviei-o a Chicago e foi o milésimo sacerdote a ser formado por eles. Se pensarmos que a Fraternidade de São Pedro também terá formado outros mil, já vamos em 2000  sacerdotes que dizem a missa tradicional nos Estados Unidos. 


8) A celebração da forma extraordinária exerce alguma influência sobre o modo como celebra a forma ordinária?

Pe. Tim: Sem dúvida. A influência maior consiste na espiritualidade, no silêncio, na reverência, na extrema atenção presente em cada gesto que agora faço – por exemplo, o assegurar-se de que nenhum fragmento de hóstia caia por terra ou fique agarrado aos dedos do celebrante. Nesta matéria, penso que não seria uma má ideia que o novo rito recuperasse um pouco da disciplina tradicional, uma disciplina que infunde temor e reverência diante do que temos o privilégio de realizar aqui nesta terra. Numa palavra: do princípio ao fim, a liturgia tradicional mergulha-nos no mistério transcendente de Deus.



Mons. Slattery visita a par
óquia do Pe. Davison
(o primeiro a contar de esquerda).
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II  –  AS REFLEXÕES DA PAIX LITURGIQUE


1 – É difícil encontrar melhores palavras do que as do Pe.  Timothy Davison para expressar a atracção que a missa tradicional exerce sobre um tão grande número de sacerdotes: “feitos” para celebrarem o santo sacrifício, os sacerdotes, no seio da liturgia nova, acabam por se sentir sem rito – no sentido mais nobre do termo, segundo o qual ele é expressão visível e invisível desse acontecimento sagrado de que, no altar, eles são ministros. O Pe.  Tim diz-nos ainda, como o faz um grande número de sacerdotes diocesanos que começaram a celebrar segundo o rito tradicional, que a atracão da forma extraordinária é contagiosa: os outros sacerdotes vêem a alegria de quem a celebra e os frutos que daí se retira, e vem-lhes a vontade de os imitar.


2 – De acordo com o Pe.  Tim, desde 2007 e da publicação do Summorum Pontificum, houve já 2000  sacerdotes americanos que antes só celebravam na forma ordinária, entretanto também já aprenderam a celebrar na forma extraordinária. Não é possível louvar o suficiente a importância do Motu Proprio de Bento  XVI no que diz respeito ao lento mas profundo movimento que ele pôs em marcha. Cabe também sublinhar o papel notável desempenhado pelas comunidades com capacidade de levarem a cabo uma pedagogia litúrgica, neste caso a dos Cónegos da São João de Câncio e da Fraternidade de S. Pedro (mas nos Estados Unidos, podíamos ainda citar o Instituto de Cristo-Rei e os mosteiros tradicionais). É bem sabido como são importantes, em todo o processo de educação restauradora, este tipo de apoios.


3 – O bispo do Pe.  Davison, Mons.  Edward Slattery, mostrou ser particularmente acolhedor. Convém lembrar que a situação nos Estados Unidos é bem diferente da que se vive no velho continente, e em especial da que se vive em França e em Portugal, já que nos Estados Unidos não é a ideologia que impera. Enquanto que na Europa – descrita há pouco tempo pelo Papa Francisco como uma periferia envelhecida já sem sacerdotes e sem religiosas (2) –, muitos bispos preferem ver diminuir, cada ano que passa, o número de vocações e o número de fiéis, em vez de abrirem o seu coração e as suas igrejas à forma extraordinária, já do outro lado do Atlântico, a maioria dos bispos, mesmo os que não são ligados à tradição, mostram uma atitude pragmática, e por isso, vendo que a liturgia tradicional atrai os fiéis e gera novas vocações, não hesitam em dar-lhe um espaço adequado para que se possa desenvolver, e nem sequer o fazem de má cara. Que bom exemplo!


4 – A respeito dessa paz paroquial que nos é descrita pelo Pe. Tim, fica claro que ela vem, em primeiro lugar, da paz litúrgica que enche o coração deste pároco. Sem dúvida que, estando assim as coisas, não tem de lidar com esses comités de leigos transformados em “clérigos substitutos” que se encontram em redor da nova liturgia. Resta pois sublinhar a naturalidade com que, desta maneira, a forma tradicional readquire o seu lugar próprio na vida da Igreja, da qual, em certo sentido, esta pequena paróquia do Oklahoma constitui um microcosmos.



(1) Dom Mark Kirby é o prior do mosteiro de Nossa Senhora do Cenáculo, que se dedica à adoração perpétua do Santíssimo Sacramento. Erigido a princípio na Diocese de Tulsa logo depois do Ano da Eucaristia instituído por João Paulo II (2004-2005), ele encontra-se agora em Silverstream, no condado de Meath, na Irlanda. A liturgia ordinária do mosteiro segue a forma extraordinária.

(2) Por ocasião do encontro com os novos bispos de Propaganda Fide, a 20 de Setembro de 2014.