Carta 68 publicada a 8 fevereiro 2016

Entrevista com o Pe. Claude Barthe sobre como instalar a forma extraordinária nas paróquias

A 30 de Novembro de 2015, em França, as edições de “L’Homme Nouveau” publicaram uma brochura dedicada às diferentes modalidades de celebração permitidas no âmbito da forma extraordinária do rito romano, prefaciada pelo Pe. Claude Barthe, capelão da peregrinação internacional “Summorum Pontificum” (1).

Ao mesmo tempo, também nós publicávamos a interessantíssima e original conferência do Pe. Milan Tisma, proferida por ocasião do primeiro congresso “Summorum Pontificum” do Chile. Vista a coincidência, aproveitámos para pedir ao Pe. Barthe que nos comentasse, ponto por ponto, o testemunho dado pelo Pe. Tisma, com o fito de aprofundar o tema dos vários caminhos que se abrem a todos os párocos que tenham o desejo de enriquecer a sua liturgia quotidiana e dominical segundo o espírito do Motu Proprio de Bento XVI.




1) Recuperar o sentido do sagrado. Foi este o primeiro ponto abordado pelo Pe. Tisma na sua palestra. Em si mesmo, isso nada tem de novo, já que são muitos os testemunhos de fiéis e sacerdotes a darem conta de que o interesse que nutrem pela forma extraordinária do rito romano provém justamente da maior sacralidade que aí encontram. Ainda assim, e para justificar o que pretendia dizer, o Pe. Tisma apoiou-se na noção de “mysterium tremendum et fascinans”, desenvolvido a seu tempo pelo teólogo luterano Rudolf Otto. Causou-lhe surpresa, esta referência?

Pe. Claude Barthe: A referência à obra de Rudolf Otto, “O sagrado”, onde este é estudado como, ao mesmo tempo, tremendo (tremendum; terrificante) e fascinante (fascinans), é interessante na medida em que permite corrigir a tendência moderna de fazer desaparecer do culto toda a transcendência, e de fazer do Deus a quem nos dirigimos um objecto à nossa medida. Mas é preciso manter ambos os termos: Deus é por natureza O incompreensível – O que, em si mesmo, não pode ser apreendido – e, no entanto, Ele comunica-se a nós por meio da revelação e da Encarnação do Verbo, o Emanuel, Deus connosco, que Se fez um de nós. São Tomás explica na Suma contra os Gentios que a suprema “conveniência” da Encarnação deriva precisamente de nos fazer compreender que o acesso à felicidade eterna, que consiste em unir a nossa a alma ao que a ultrapassa infinitamente, é algo de possível, já que a divindade se uniu à nossa humanidade. A humanidade de Jesus Cristo, tão próxima e como que palpável na Igreja, mergulha-nos no abismo insondável da divindade unida a esta humanidade, o que transparece nos milagres que ela produz, por exemplo, a remissão dos pecados, a transubstanciação eucarística.

2) Para o Pe. Tisma, se a privamos do mistério que lhe é próprio, a liturgia deixa de ser epifania (manifestação) da glória e da perfeita santidade de Deus. Concorda?

Pe. Claude Barthe: Estou completamente de acordo. O Pe. Tisma tem em mira, e a justo título, essa redução do divino ao simplesmente humano, da fé ao simplesmente racional, que se manifesta na liturgia dos dias de hoje, em que a transcendência é aplanada, por assim dizer. Esta mesma liturgia que, antes de tudo o mais, pretende ser “próxima das pessoas” acaba por já não as interessar, a tal ponto, que “deixam de pôr os pés” na igreja. Paradoxalmente, a verdadeira proximidade que uma liturgia bem compreendida estabelece entre o homem e a santidade incandescente de Deus, passa pelo sentimento da existência de um distanciamento absoluto. O romancista alemão Martin Mosebach exprime bem esta ideia no seu livro “A liturgia e o seu inimigo – A heresia do informe” (Hora Decima, 2005). O paradoxo inerente à acção litúrgica, diz-nos ele, está no facto de que ela desvela e revela o mistério velando-o e escondendo-o. Ela esconde a presença de Deus infinito e insondável sob véus de respeito, formas e ritos, e, por isso mesmo, ela acaba por revelar e por permitir o acesso da alma a esta presença: trata-se de uma epifania que esconde para melhor manifestar.
A consagração, feita em língua vulgar e sobre uma mesa disposta no meio da assembleia, do pão que daí a pouco se vai tomar nas próprias mãos para ser comungado, será porventura melhor compreendida no seio da fé do que a consagração da liturgia oriental, cantada por entre nuvens de incenso numa língua sagrada misteriosa, por detrás do véu que se fez descer diante da porta da iconostase? A pergunta responde-se por si própria: no primeiro caso, cremos ter compreendido tudo, e, na realidade, não compreendemos o que quer que seja, porque a proximidade que uma liturgia banalizada cria torna muito difícil um verdadeiro encontro iluminado pela fé; já ao contrário, o distanciamento sagrado criado pela liturgia de São João Crisóstomo consegue verdadeiramente aproximar a alma de Deus. A liturgia é algo de semelhante àquelas trevas luminosas por entre as quais Moisés recebeu a revelação divina: ao mesmo tempo, obscura e fulgurante. Ou, de outro modo, é como a “nuvem luminosa” que “tomou debaixo da sua sombra” os três discípulos que foram testemunhas da Transfiguração do seu Senhor (Mt. 17, 5).

Continuando com o exemplo dessa “natividade” do Santo Sacramento no momento da consagração, que é o coração da Missa: as genuflexões, a permanência de joelhos, as tochas dos ceroferários, os incensamentos, os toques de campainha, os sagrados linhos, as alfaias sagradas em que o Senhor fica depositado (cálices, cibórios), mas ainda, a santa mesa da comunhão, onde nos ajoelhamos, com as mãos recolhidas sob a toalha de linho, para receber a sagrada hóstia nos lábios, o majestoso sacrário onde a sacratíssima reserva será depositada, tudo isso provoca um distanciamento pelo respeito de adoração, mas, ao mesmo tempo, aproxima, porque está ao serviço do acto de fé.

3) Para o Pe. Tisma, os sacerdotes têm o dever de trabalhar em prol da reconciliação entre os fiéis, usando para isso todos os meios litúrgicos à sua disposição, a começar pelo oferecimento regular da Santa Missa na forma extraordinária. Para quem está aqui, em França, como em tantos países europeus, de Portugal em diante, uma tal afirmação (e nós mesmos não conseguiríamos dizer melhor), não será apenas um desejo pio?

Pe. Claude Barthe: De todas as maneiras, não deixa de ser uma obra piedosa esta em que também a Paix Liturgique se empenha, e pela qual, certamente, não cabe regatear-lhe louvores. Em França, os párocos que compreendem ter este dever são ainda poucos, é bem verdade, mas o número vai crescendo. Uma experiência pontual leva-me aliás a avançar uma idéia apropriada para a festa de Natal. Em muitas paróquias francesas, a Missa do Galo é celebrada às 9 ou às 10, quando já é noite escura. Nada impede que o pároco celebre – ou encontre um sacerdote idôneo que o faça; por exemplo, um membro de uma comunidade dedicada à liturgia tradicional) – uma missa em forma extraordinária como manda a cartilha, por assim dizer, isto é, à meia-noite. Estou certo de que ficará surpreendido com a afluência de gente, inclusive de paroquianos que habitualmente frequentam a forma ordinária.

De maneira mais geral, pode dizer-se que os párocos não deveriam hesitar em recorrer a sacerdotes familiarizados com a forma extraordinária, que, além de virem celebrar uma missa tradicional, sempre os poderiam ajudar com as confissões, as visitas aos doentes, os enterros. Em fazendo isso, estariam ao mesmo tempo a contribuir para a reconciliação entre os sacerdotes.

4) Além de Rudolf Otto, o Pe. Tisma também faz menção de um outro alemão, Mons. Klaus Gamber, ao lançar mão de uma noção pouco usada nos meios tradicionais: a ideia de que a liturgia seria a “pequena pátria” dos católicos, e da qual estes foram privados, tornando-se por isso mesmo apátridas litúrgicos. Não teremos aí uma das razões – aliás, raramente tratada de maneira tão clara – da emergência do que os sociólogos têm chamado de catolicismo identitário?

Pe. Claude Barthe:
 É verdade, Mons. Gamber lamentava o facto de que os católicos hajam sido privados da sua “pequena pátria”, porque, no novo rito, que é desirmanado até ao extremo, não se consegue encontrar duas missas idênticas. Quando eu era pequeno, íamos em família até Espanha, que não ficava muito longe de onde vivíamos. Aí, assistíamos à Missa dominical em qualquer cidade ou aldeia, e tínhamos a mesma Missa que conhecíamos na nossa paróquia. De certa maneira, compreendíamos tudo… excepto o sermão em espanhol. Os católicos de todo o mundo, onde quer que assistissem à Missa, tinham a impressão de estarem em casa em todo o lado. Por altura da reforma litúrgica, falava-se, não ainda de mundialização, mas da “aldeia global”. É verdadeiramente espantoso que os que fabricaram a nova liturgia não tenham compreendido que a liturgia tinha já dentro de si um elo universal, pelo quam se abriam as portas de uma Cidade que abarcava o mundo inteiro, a aldeia global da liturgia católica. Além disso, nessa altura em que a secularização já avançava a passos largos, e no seio da qual o catolicismo se ia tornando algo de cada vez mais estranho no interior da Aldeia Global, eles teriam podido perceber, se tivessem tido em conta os verdadeiros “sinais dos tempos”, que os católicos, nesse momento mais do que nunca, tinham necessidade de uma casa de família.

Se, de facto, o catolicismo identitário, que corresponde a um leque que vai desde a FSSPX até à Comunidade de Saint-Martin, atrai hoje praticantes e vocações, é porque torna disponível um ritual tradicional ou tradicionalizante que permite ter a experiência dessa comunidade de fé, a experiência de pertença à “familia Christi”. Ora, o uso do latim tem muito a ver com isto: rezar e cantar na língua sagrada da Igreja Romana exprime e fortifica esse elo de unidade. Infelizmente, a hierarquia católica e os seus peritos estão completamente desfasados desde há mais de meio século.

5) Gradualidade e continuidade são dois princípios recomendados pelo Pe. Tisma para uma instalação duradoura e estável da forma extraordinária nas paróquias. O que nos tem a dizer sobre isto?

Pe. Claude Barthe: Estou plenamente de acordo. No meu pequeno livro sobre a aplicação da reforma da reforma, pondo a missa na forma extraordinária como horizonte a alcançar, eu insistia sobre a gradualidade. Perdoem-me que me cite: “A prática da reforma da reforma numa paróquia ou num lugar de culto habitual é – quase pela sua própria natureza – um processo gradual, uma transição mais ou menos rápida de um estado “ordinário” para um estado próximo do “extraordinário”. A lei da gradualidade pode aqui ser aplicada sem problemas de consciência.” (2) Aumentar as partes ditas em latim, reintroduzir a comunhão na língua, utilizar a oração eucarística I (o cânone romano), orientar o altar para Deus, recuperar as orações do ofertório tradicional (que são ditas em voz baixa), são as principais pistas a seguir. Pouco a pouco. Por exemplo, volta-se o altar para o “lugar certo” em certas ocasiões, e depois, sempre, aos dias de semana; mais tarde, em certas festas importantes, e por fim, todos os domingos e sem variação. A maior parte dos sacerdotes que, nas suas paróquias, levaram a cabo uma re-orientação tradicional da liturgia foi assim que procederam.

6) O Pe. Tisma propõe também certos gestos simples para, de um modo concreto, se reorientar a liturgia paroquial de maneira a voltar a pôr Nosso Senhor Jesus Cristo no centro da atenção: um só altar para as duas formas litúrgicas, o “arranjo cénico” do presbitério, o uso das diferentes modalidades da liturgia extraordinária, etc. Visto que está em contacto com muitos sacerdotes de paróquias que celebram as duas formas do rito (“in utroque usu”), teria outros exemplos a acrescentar?

Pe. Claude Barthe: O mais importante do ponto de vista simbólico, e também o mais difícil de se fazer passar à prática, não para a maior parte dos fiéis, mas sim para os mais “reformados” de entre eles (as religiosas, as senhoras que distribuem a comunhão, os diáconos permanentes), é a celebração voltada para Deus. Donde aquele esquema de transição que evoquei, e em relação ao qual, sei de alguns exemplos de sucesso. Também é importante a formação dos acólitos, se possível, numerosos, e que saibam ajudar à Missa nas duas formas: eles são uma grande ajuda para a solenização das cerimónias (e para que se passe, degrau a degrau, do ordinário ao extraordinário). Do ponto de vista pedagógico, todos os sacerdotes que têm esta preocupação preparam, além disso, livretes fotocopiados para cada uma das missas, de maneira que, tanto na missa ordinária “reforma da reforma” como na missa extraordinária, quem a elas assiste possa seguir o ritual virando simplesmente as páginas: não apenas tudo se torna assim mais fácil, mas, além do mais, fazendo isso, é a piedade litúrgica que sai a ganhar bastante. Poderíamos ainda mencionar muitos outros pontos: certos sacerdotes fazem tocar o órgão durante o ofertório, solenizando assim esse momento, enquanto eles dizem em baixa voz as orações tradicionais; outros há que pronunciam, já não a alta voz, mas antes em voz mediana, a oração eucarística, em francês ou em latim, ou que mudam para o latim ao começar a consagração, o que também provoca um efeito poderoso de sacralização; outros ainda, para conseguir afastar do altar as multidões de crianças que herdaram do precedente pároco, e para dar uma nota festiva, transformaram-nos numa confraria de infantes de Maria, e vêm agora vestidos em albas brancas, passando a tomar o seu lugar, já não no presbitério, mas ao início da nave, junto dos escuteiros em uniforme e dos membros do coro, etc.

7) Uma última questão: o Pe. Tisma alude também à salvaguarda dos usos e privilégios locais. Isso é permitido à luz do motu proprio Summorum Pontificum e da instrução que o acompanhou? E em França, há usos desse género?

Pe. Claude Barthe: Em França como noutros lugares, sempre houve certos costumes, resquícios de antigos usos de igrejas locais que foram conservados até à reforma de Paulo VI, e que, por isso, são autorizados pelo Summorum Pontificum, já que o motu proprio faz recuar os ponteiros até ao ano de 1962, pouco antes do Concílio. Sempre houve também certos pios hábitos que tinham sido agregados ao desenrolar da cerimónia. Por exemplo, as grandes igrejas de França tinham um suíço que percorria as coxias para manter a ordem, em especial aquando das movimentações para a comunhão, e que golpeava o chão com a sua alabarda para dar sinal de que nos devíamos ajoelhar. Eu cheguei a conhecer o suíço de Notre-Dame de Paris, que deve ter estado em funções até meados dos anos sessenta; um outro apareceu à cena em Saint-Nicolas du Chardonais, cerca de dez anos depois. Também houve paróquias ou comunidades que restabeleceram o costume da distribuição do pão bento, que outrora fora muito popular na missa solene: grandes pães, geralmente doces ou com anis, consoante as províncias, eram apresentados ao celebrante que, no momento do ofertório, os benzia; depois, eram divididos em pequeninos pedaços, para serem distribuídos por volta do fim da missa. Em certas comunidades religiosas, até mesmo aos anos 70, no Sábado Santo, benzia-se um cordeiro, para o almoço do dia de Páscoa. E há ainda as fanfarras de Saint-Hubert, que tocam no coro alto durante a missa do patrono dos caçadores. Dir-me-á, talvez, que tudo isso parece um pouco folclórico, mas é popular. Mais propriamente litúrgico, e muito francês, é o uso que queria que os cantores estivessem em capa, não apenas para as Vésperas, mas também durante a missa solene, e se possível, diante de uma grande estante, o que causa grande efeito.


(1) La messe traditionnelle dans tous ses états. 52 páginas. Éditions de L’Homme nouveau, colecção Paix liturgique, 6,50 euros.
(2) La Messe à l’endroit. Un nouveau mouvement liturgique, pág. 75. Éditions de L’Homme nouveau, colecção Hora Decima, 2010. 102 páginas.