Carta 69 publicada a 7 março 2016

Participação no canto durante a Missa

Este mês, inauguramos uma série de cartas dedicadas à relação entre a música litúrgica e a forma extraordinária do rito romano, a cargo do Maestro Aurelio Porfiri, romano de gema e de coração, nascido no Trastevere, e com uma longa experiência em vários campos da música litúrgica, que foi colhendo em diferentes ambientes culturais (desde a Basílica de São Pedro, em Roma, até ao continente asiático, a que se vem dedicando nestes últimos sete anos). Este conjunto de artigos tem a intenção de apresentar uma panorâmica contemporânea da música litúrgica, enquanto se investiga os fundamentos que a tornam apta para todos os ritos e formas litúrgicos, e também assim no âmbito do “novo” quadro litúrgico criado pelo Motu Proprio Summorum Pontificum do Papa Bento XVI.

È uma verdadeira alegria, e uma honra, que o Maestro Porfiri tenha escolhido a Paix Liturgique como um dos canais de divulgação do seu trabalho, que cremos poder ser não só uma ocasião de intercâmbio entre peritos na matéria, mas que, além disso, poderá interpelar cada fiel a propósito sua relação com o canto litúrgico da importância que cada um lhe dá em vista da sua participação na acção sacra que é a liturgia.


Participação no canto durante a Missa
Aurelio Porfiri

Poucos são os temas que atraíram tanta atenção por parte dos peritos em coisas litúrgicas, como o que diz respeito à participação. Este termo foi impugnado, ora por uma facção ora por outra, como se cada uma delas fosse possuidora de um seu significado secreto, recôndito, revelado somente a um grupo de eleitos, que logo fazia surgir debates sem fim, ainda que legítimos, nas reuniões desses liturgistas gnósticos. Gnósticos porque, em especial depois do concílio, se foi fazendo da participação um cavalo de batalha, mas ocultando as coordenadas para a respectiva interpretação, acabando por transformá-la num recipiente das mais variadas pretensões de tipo político, sociológico ou psicológico.

Para alguns, “participar” significava que todos podiam fazer tudo, mas trata-se de uma interpretação que menospreza o verdadeiro significado do termo participação, que não corresponde à modalidade “fazer”, mas sim àquela própria do “ser”, e que, por isso, não excluindo o fazer, o contém e envolve dentro de um processo de maior amplitude e mais articulado. O fazer pressupõe o ser, e tudo quanto se faz não é um fim em si mesmo. Tentemos precisar melhor estas noções.

Duas confusões assombrosas

A Sacrosanctum Concilium define a liturgia como “acção sagrada”. Isso poderia fazer-nos pensar que o elemento do fazer seria mais importante que o do ser, mas, na realidade, esta definição deve ser lida por inteiro, uma vez que “sagrada” aparece a qualificar a acção, e, deste modo, o fazer implicado pela acção enxerta-se no ser que é próprio do elemento sacro. Tal como acontece com a cruz que se leva, o elemento do ser está desde a nossa origem enxertado no Calvário, enquanto que o elemento do fazer, esse cabe-nos a nós carregá-lo ao longo da “via dolorosa” que é a nossa vida. Por conseguinte, sendo embora actio, esta está ordenada à modalidade do sacro, que é o que dá o sentido a essa acção, fazendo com que a mesma não venha a tornar-se um puro mover-se de tipo “vitalístico”. Cantar por cantar não tem qualquer sentido; não faz sentido dizer que a assembleia canta, se este cantar (o “fazer”) não está enxertado somente na real presença (diríamos com Divo Barsotti) que funda a categoria do “ser”. Ensinava Santo Agostinho que in interiore hominis habiat veritas (“é no interior do homem que mora a verdade”).

Desventuradamente, ao mesmo tempo que alguns reformadores do pós-concílio faziam esta confusão que acabámos de mencionar, da parte de alguns que se sentiam ligados ao que, mais tarde, se chamaria a forma extraordinária do rito romano, também se viu amiúde uma reacção igualmente desadequada, de sentido contrário, e segundo a qual era sinal de fidelidade à “tradição” assistir simplesmente e de modo passivo à Missa, sem cuidar de cantar nesta ou naquela parte da celebração, e limitando-se a desfrutar do que o coro ou o organista podiam proporcionar. Parece, no entanto, que ambas estas atitudes escondem uma desadequação de fundo, e que, recuperando um sentido mais autêntico da participação, se acabará por aprofundar certos elementos importantes da própria Missa, que, de outro modo, correm o risco de permanecer algo relegados para mero pano de fundo, destinando-se apenas a ser dilacerados por “guerras litúrgicas” que, no final, não conduzem a qualquer vitória.

Participação como convocação

Participar, como a própria palavra o diz (pars+capere), significa “tomar parte”. Ora, o modo em que se lê esta palavra pode dar origem a consequências importantes. Infelizmente, em tempos recentes, pôs-se muita ênfase sobre “quem toma parte”, mais do que sobre “a coisa em que se toma parte”. Este deslizamento do sujeito chegou a gerar um deslizamento no plano valorativo, como se os convidados de uma festa de anos fossem mais importantes do que o festejado. Na realidade, como bem sabemos, o festejado é necessariamente o mais importante, e todos os esforços dos convidados da “festa” (e este é outro termo largamente usado e abusado durante os últimos decénios) são envidados em função do festejado. De contrário, corre-se o risco daquilo a que o liturgista servita Sivano Maggani chama de “participacionismo”, o frenesim de fazer com que todos façam tudo, com a consequente perda do centro da actio liturgica, que não quer dizer “quem participa”, mas sim aquilo em que se participa. Na liturgia, a agir não somos nós, nós somos “agidos”. Creio que este pensamento foi bem formulado pelo monge Pierre Miquel (1920-2003), abade da Abadia beneditina de Saint-Martin de Ligugé: “Durante muito tempo, pensou-se na liturgia, em primeiro lugar, se não exclusivamente, como expressão do sentimento religioso. Hoje, estamos a descobrir que a liturgia, antes de ser “expressão”, isto é, a soma das emoções de um grupo humano, é “impressão”, isto é, acolhimento de um apalavra que convoca a assembleia litúrgica, a reúne com uma força unificante e a envia para que possa difundir aquilo que recebeu na celebração” (Miquel, 2008, p. 10).

A perspectiva defendida no interessante texto deste sacerdote beneditino, e repetida depois em numerosos escritos do Cardeal Ratzinger/Bento XVI, é a que apresenta a liturgia como dom de que somo chamados a participar. Isto mesmo era o que formulava eximiamente o Sumo Pontífice, num discurso aos bispos da Suíça, a 7 de Novembro de 2006: “Penso que depois de tudo isto, a pouco e pouco se torne claro que a Liturgia não é uma ‘automanifestação’ da comunidade que, como se diz, nela entra em cena, mas é ao contrário o sair da comunidade do simples ‘ser espontâneos’ e aceder ao grande banquete dos pobres, entrar na grande comunidade vivente, na qual o próprio Deus nos alimenta. Este carácter universal da Liturgia deve entrar de novo na consciência de todos. Na Eucaristia recebemos uma coisa que nós não podemos fazer, mas entramos ao contrário em algo de maior que se torna nosso, precisamente quando nos entregamos a esta coisa maior procurando celebrar a Liturgia verdadeiramente como Liturgia da Igreja.” Todavia, esta participação, como já se disse e repetiu, é forçosamente hierárquica e ordenada em função do sujeito principal da celebração, aquele per ipsum, et cum ipso, et in ipso que o celebrante proclama a cada Missa. E é activa, no sentido de que é uma resposta voluntária do povo de Deus à convocação à celebração, não no sentido de que nos entreguemos ao “activismo”.

A música é arte, a arte é elitista

E eis que se desfraldou o slogan “que o povo cante!”, muito caro ao movimento CL, sem que se recordasse que com isto se queria dizer “que o povo cante quando lhe compete”, e não que se pretendesse que este canto se viesse sobrepor a todo o tipo de profissionalismo considerado necessário para que a liturgia resplandecesse com uma beleza que evocasse a Beleza de Deus. Também isto mesmo era o que pedia a Sacrosanctum Concilium, que, no n. 28, estabelecia: “Nas celebrações litúrgicas, limite-se cada um, ministro ou simples fiel, exercendo o seu ofício, a fazer tudo e só o que é de sua competência, segundo a natureza do rito e as leis litúrgicas.”

Esta óbvia impropriedade é seguida, ou talvez precedida, de uma outra, que tem a ver com o conceito que se tenha da arte e da música no âmbito da liturgia. Nota-se o medo de expressar uma verdade que é evidente: a arte, inclusive a arte litúrgica, é elitista. Mas importa que nos entendamos sobre o que é este elitismo. Não se pretende com este termo que essa arte seja excludente, como se fora um saber gnóstico reservado a uns poucos. Não, nada disso. E no entanto, ela é elitista, tanto no que respeita à sua criação como à sua execução, ma medida em que exige uma preparação e um estudo técnico que está reservado a quem escolhe dedicar-se à música, à pintura, à escultura, e o faz com grande empenho e estudo.

A ideia de que a arte deve vir de baixo não é congruente. A arte não vem do povo, é para o povo. Se aceitarmos que a arte deve vir de baixo, expor-nos-emos a produções que não são verdadeiramente do povo, mas que o povo cria “impressionado” pelas modas culturais do momento, modas essas que frequentemente estão em contraste declarado com a mensagem cristã, mas às quais o povo está impossibilitado de reagir, não tendo, como não tem, instrumentos artísticos, culturais e estéticos para poder discernir. Se sinto certos sintomas, posso adivinhar que tipo de doença tenho, com base numa certa experiência, mas para um diagnóstico certo, tenho de me pôr nas mãos de um médico, que tem uma visão mais ampla do comportamento próprio de certos sintomas. O músico formado sabe como resguardar-se de certos desvios de tipo comercial (ou, pelo menos, deveria saber, mas aqui estamos a generalizar) e sabe como proteger aquele elemento sagrado presente na música que tem a capacidade de elevar os espíritos até às coisas celestes. O povo, entregue a si mesmo, e sem o auxílio de quantos dispõem dos meios técnicos e artísticos para actuar na liturgia, acabará por apenas lançar mão de coisas elementares, rebaixando, em vez de elevar, o nível da liturgia, e expondo-se a uma espécie de curto-circuito celebrativo. Por isso, como já o dizia Bento XVI, o que acaba por acontecer é que se autocelebra, a Missa torna-se uma automanifestação da comunidade em sentido horizontal, sem ter conta do facto de que a celebração se dirige a Deus, e não à nossa auto-expressão (por muito necessária que esta possa ser).

Já Romano Guardini fazia notar que “a liturgia não é obra do indivíduo, mas sim da totalidade dos fiéis (…) O sujeito que cumpre a acção litúrgica da oração não é a mera soma total de todos os indivíduos participantes da mesma fé. É o conjunto dos fiéis, mas enquanto a sua unidade assume um valor autónomo, prescindindo da quantidade dos fiéis que a formam: a Igreja” (Lo spirito della liturgia. I santi segni, 1930, p. 37). É necessário estar-se atento para não se adoptar um conceito de participação demasiado horizontal, isto é, para não se correr o risco de que falámos acima. Recordávamos que o horizontal tem sentido quando se enxerta no vertical. A este propósito, agrada-me citar uma provocação de Robert Poulet, que, no entanto, me parece muito certeira, e que corre assim: “Um dos maiores delitos que foram cometidos contra o povo foi o de o abandonar ao seu próprio gosto, que é detestável. É também verdade que o dos burgueses também não é melhor. A beleza, no tempo em que reinava, foi era objecto de uma árdua disciplina, imposta por uma minoria à maioria, e da qual esta, tendo-se tornado senhora dos próprios prazeres e das próprias preferências, se libertou aliviada” (Poulet, 1969, p. 11).

Não é por culpa do povo que o gosto do povo não é detestável, mas porque, frequentemente, ele é una presa das modas, ou de potentados económicos e comerciais, que têm à disposição todos os meios para orientar-lhe os gostos, aproveitando-se dos sentimentalismos mais baixos e imediatos. Mas então, que dizer do canto popular? O canto popular, que, no passado, foi amiúde uma nobre expressão do que há de melhor na sensibilidade verdadeiramente popular, foi sempre tido em consideração na liturgia, que lhe foi dedicando espaços apropriados, ao mesmo tempo que o distinguia com cuidado do canto litúrgico, que é coisa completamente diferente. Assim, uma vez que se haja compreendido de que coisa se participa, é preciso que se esteja atento a com que coisa se participa.

Participar integralmente

Mas, afinal, de que maneira deveremos entender a participação? Deve considerar-se que é assim tão importante participar do canto? Este é um tema que exige ser tratado com cuidado e precisão.
Como acabámos de dizer, a participação no canto é seguramente importante, mas, antes de mais, temos de perceber o que se entende por participar, tentando manter uma posição equilibrada entre diversas facções que se digladiam a este propósito. É fácil compreender que o “participacionismo”, a que acenávamos antes, recebeu muito de uma ideia completamente errada de participação, segundo a qual todos deveriam fazer tudo, já que participar significaria “fazer alguma coisa”. A participação como “acto físico” dá-nos uma visão “dimidiada”, como diria o bom Romano Amerio. A aceitarmos isto, teríamos de convir em que quem vai a um concerto, não participa, já que directamente não é ele que toca ou canta, ou que quando assistimos a um filme, não participamos, já que não estamos a representar qualquer dos papéis da fita, e assim por diante. Nem é difícil entender isto, tendo presente que para a participação também interessa a interioridade de quantos participam. Mas há também um erro de sentido oposto. É o que é praticado por aqueles que encerram tudo quanto é participação num acto exclusivamente interior, que, podendo embora compreender-se se trata de um concerto ou de uma ida ao cinema – pois, aí, é para todos óbvio que o espectador participa do desempenho dos músicos ou dos actores – ja o será menos, e menos desejável também, num acto do corpo místico integral como é o caso da Missa.

Nós não somos espectadores que voluntariamente decidem assistir e “participar” a este ou àquele espectáculo, segundo a modalidade própria de cada um deles. Na Missa, somos vocati, diríamos que somos convocados como membros do corpo místico que é a Igreja, A nossa participação, aqui, é integral, e pede de nós um assentimento interior e o acto de participação do homem integral (interior-exterior). Ninguém pode pôr em dúvida que a participação interior precede a exterior: “A quantos insistiam de mais sobre a própria participação durante a Missa, Evelyin Waugh respondia assim: participação não significa ouvir a tua própria voz, significa que Deus está a ouvir as nossas vozes. Só Ele sabe quem ‘participa’ na Missa” (Thomas E. Woods, Sacred Then and Sacred now. The return of the Old Latin Mass, 2008, p. 77). Mas esta precedência existe no plano temporal, não quantitativo, sendo ambas importantes para se conseguir uma recta participação na liturgia.

A participação segundo os Papas do século XX

Dito isto, e fazendo uso de bom senso e de equilíbrio, como recomendam os Papas, tem de se convir que também se deve cuidar a participação exterior. No que respeita ao acto exterior, esse traduz-se nas respostas ao sacerdote, mas também na participação em certos trechos do canto. E esta solicitação não é somente uma consequência advinda da reforma litúrgica sucessiva ao Concílio Vaticano II, mas era também algo que já os Sumos Pontífices pré-conciliares pediam solenemente. O apelo para que os fiéis fossem activamente beber da fonte da liturgia aparecia já em São Pio X, que no seu Motu Proprio sobre a música sacra, de 22 de Novembro de 1903, afirmava o seguinte: “Sendo, de facto, nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça de todos os modos, e permaneça em todos os fiéis, é necessário prover, antes de qualquer outra coisa, à santidade e dignidade do templo, onde, precisamente, os fiéis se reúnem para alcançarem esse espírito a partir da sua fonte primária e indispensável, que é a participação activa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja.”

Na Divini Cultus Sanctitatem, de 20 de Dezembro de 1928, Pio XI explicita ainda mais, este mesmo ponto, quando declara solenemente: “A fim de que os fiéis tomem parte mais activa no culto divino, restitua-se para o povo o uso do canto gregoriano, no que ao povo tocar. É necessário, na verdade, que os fiéis, não como estranhos ou mudos espectadores, mas verdadeiramente compreendedores e compenetrados da beleza da Liturgia, assistam às sagradas funções de tal modo que alternem a sua voz - segundo as devidas normas e instruções, mesmo em procissões e outros momentos solenes -, com a voz do sacerdote e a do coro. Porque, se isto felizmente suceder, não haverá já mais que lamentar esse triste espectáculo em que o povo nada responde, ou apenas responde com um murmúrio fraco e confuso às orações mais comuns expressas na língua litúrgica e até em língua vulgar” (IX). As modalidades de tal participação, pedida com voz enlevada pelos Sumos Pontífices, seriam depois melhor enquadradas em documentos sucessivos, como os de Pio XII.

Pio XII, na Mediator Dei (1947), diz-nos que o culto pede de nós tanto uma dimensão interna como uma externa. É bem que se releia esta passagem em que o Papa Pacelli afirmava que, pese embora ser de dar maior importância a dimensão interior do culto, este “[é] externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que "pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis"; (cf. Missale Romanum, Prefácio da Natividade) porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à colectividade humana e consequentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a acção.” Este elemento externo foi cuidado e encorajado pelo movimento litúrgico, ao longo de todo o século XX, ainda antes da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

Nem se esqueça que foi também Pio XII quem, em Musicae Sacrae Disciplina, de 25 de Dezembro de 1955, vinha encorajar o uso do canto popular também na liturgia, se o mesmo pudesse ser de auxílio para a participação dos fiéis, mas sempre distinguindo , e é este o ponto que importa – o canto popular daquele litúrgico: “esses aspectos que têm mais estreita ligação com a liturgia da Igreja juntam-se, como dissemos, os cantos religiosos populares, escritos as mais das vezes em língua vulgar, os quais se originam do próprio canto litúrgico, mas, sendo mais adaptados à índole e aos sentimentos de cada povo em particular, diferem não pouco entre si, conforme o carácter dos povos e a índole particular das nações. A fim de que semelhantes cânticos religiosos proporcionem fruto espiritual e vantagem ao povo cristão, devem ser plenamente conformes ao ensinamento da fé cristã, expô-la e explicá-la rectamente, usar linguagem fácil e melodia simples, fugir da profusão de palavras empoladas e vazias, e, finalmente, mesmo sendo breves e fáceis, ter uma certa dignidade e gravidade religiosa. Quando esses cânticos sacros possuem tais dotes, brotando como que do mais profundo da alma do povo, comovem fortemente os sentimentos e a alma, e excitam piedosos afectos; quando se cantam como uma só voz nas funções religiosas da multidão reunida, elevam com grande eficácia a alma dos fiéis às coisas celestes. Por isso, embora, como dissemos, nas missas cantadas solenes não possam eles ser usados sem especial permissão da Santa Sé, todavia nas missas celebradas em forma não-solene podem eles admiravelmente contribuir para que os fiéis assistam ao santo sacrifício não tanto como espectadores mudos e quase inertes, mas de forma que, acompanhando com a mente e com a voz a ação sacra, unam a própria devoção às preces do sacerdote, e isso desde que tais cantos sejam bem adaptados às várias partes do sacrifício, como sabemos que já se faz em muitas partes do mundo católico, com grande júbilo espiritual.”

A participação externa, incluindo o canto, não é seguramente uma bandeira distintiva do pós-concílio, se se considerar que nesse período, aquele conceito tem sido usado de modo subversivo e completamente impróprio. Ora, não se pode, certamente, negar que há autores que denunciam as diferenças existentes no conceito de participação, se se compara os documentos pré-concilares com os que lhe são posteriores, até aos nossos dias (Grillo, Oltre Pio V. La riforma liturgica nel conflitto di interpretazioni, 2007), mas creio que, mesmo em se admitindo tais diferenças, elas não infirmam o ponto principal deste nosso texto: o conceito de participação, também no canto, era já encorajado solenemente pelos Papas pré-conciliares.

Propostas para uma maior participação musical na forma extraordinária

Como é, então, possível participar no âmbito da forma extraordinária do rito romano? Também aqui há modalidades e uma regra que vale tanto para a forma ordinária como para aquela extraordinária: a participação tem de ser cultivada, ensinada e encorajada. O povo, em particular em países com menor tradição de canto congregacional, não canta automaticamente. É preciso que haja uma formação litúrgica séria para todos, coisa que tem sido pedida por todos os documentos pontifícios de há 100 anos a esta parte. Há a ideia de que pôr o povo a cantar pode pôr em risco o grande repertório tradicional, mas este é um falso dilema. Há tantos espaços para o canto ao longo da celebração, que certamente não faltará espaço para a polifonia do coro ou para o gregoriano clássico, e ainda para o canto da assembleia.

Um dos recursos menos investigados por quantos estão próximos da forma extraordinária do rito romano, é justamente o que consiste em encorajar uma nova criatividade a ser posta ao serviço da Missa antiga. Às vezes, tem-se a impressão de que muitos grupos, e até bem intencionados, querem simplesmente regar a sua pequena planta, com a preocupação de que ela não morra, mas que possa ficar sempre igual. Na verdade, o objectivo deveria ser o de que ela seja capaz de gerar novas flores, entre as quais, também flores musicais. Há possibilidades de englobar o canto da assembleia nas polifonias do coro, alternando-se ou cantando conjuntamente. Depende do génio dos compositores fazer com que estas novas formas possam emergir organicamente da sabedoria musical tradicional.

Poderia dar muitos exemplos ainda, mas creio que saber usar as formas tradicionais, para daí fazer surgir novas criações, é algo que sempre esteve na linha da maneira como a Igreja foi concebendo a arte litúrgica. Pensemos, por exemplo, no Ordinarium Missae! Repito. Fazer isto não é, de modo algum, apresentar-se como alternativa ao repertório tradicional, que pode, e deve, ter sempre o seu lugar na celebração, mas é ser também gerador de novas experiências, como sempre aconteceu na história litúrgica milenar da Igreja. Há muitíssimas Missas alternadas com o canto gregoriano, compostas antes e depois do concílio. Algumas delas são de grande qualidade e de um nível artístico elevadíssimo. A ideia de alternar entre o coro e a assembleia pode ser um modo para se salvaguardar as exigências da polifonia e englobar, ao mesmo tempo, o canto do povo. Muito haveria para dizer também sobre como se pode conceber este alternar-se, salvaguardando ao mesmo tempo as exigências postas pelo texto. Houve tentativas de o fazer, mesmo recentes. Algumas dessas são de grande qualidade.

Muitas das Missas em alternatim servem-se da Missa de Angelis, já que é a mais difundida. Mas também se pode usar os outros Ordinários para compor novas obras que revelem outros tesouros do repertório, ou compor novas Missas, completamente originais (isto é, que não se baseiem em melodias pré-existentes), e que sejam concebidas prevendo já o canto da assembleia junto com a polifonia do coro, ambos ao som dos instrumentos, desde logo o do órgão. Isto foi o que se fez já antes do Concílio, e agora pode ser feito com ainda mais meios e compenetração. Depois, basta que nos confiemos a esta nova actio sacra, e nos deixemos conduzir pela sabedoria de milénios, sempre antiga e sempre nova.

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