Carta 70 publicada a 10 maio 2016

A forma extraordinária na Indonésia

Acontece com frequência que a celebração da liturgia tradicional seja vista, erradamente, como um fenómeno europeu, quando não apenas francês. Na realidade, porém, a tradição católica, por definição, não tem fronteiras. Se já estava difundida universalmente mesmo antes de 2007 (como o mostrava a presença da Fraternidade de São Pio X em todos os continentes), o seu alastramento – agora sob a designação de “forma extraordinária do rito romano” – tornou-se muito mais significativo após o Motu Proprio de Bento XVI.

Este mês, propomos uma visita ao maior país muçulmano do mundo, a Indonésia, onde, mesmo assim, a liturgia latina e gregoriana é celebrada de modo regular. Um exemplo para meditar…




I – A situação local

A Indonésia conta com mais de 250 milhões de habitantes, na sua grande maioria muçulmanos (87,2 %, segundo um inquérito de 2010). Trata-se, de facto, do maior país muçulmano do mundo, antes mesmo do Paquistão e da índia. Os três séculos de presença holandesa fizeram diminuir em muito a presença do catolicismo, que, no entanto, havia chegado àquelas paragens no início do século XVI com os missionários portugueses. Hoje, os católicos não são senão 3%, o que, ainda assim, quer dizer um pouco mais de 7 milhões.

Todavia, a Igreja está presente em todo o arquipélago e em todos os grupos étnicos, com 37 dioceses e um cardeal, o arcebispo emérito de Jacarta, Mons. Julius Darmaatmadja, jesuíta. Como em todo o lado, ou quase, a missa tradicional fora abolida quase por completo por altura das reformas conciliares. Hoje, porém, ela é celebrada regularmente em pelo menos três dioceses: em Bandung, na ilha de Java; na capital, Jacarta; e em Pontianak, na ilha de Bornéu. Acrescente-se ainda um quarto lugar de culto, que acabou de despontar, no sultanato de Yogyakarta (Java).

Fazer uma pesquisa sobre um país tão longínquo e culturalmente tão diferente, não é tarefa fácil…

A confirmação da celebração da liturgia tradicional na Indonésia veio-nos sobretudo pela página Facebook Populus Summorum Pontificum, relativa à peregrinação internacional a Roma (com mais de 22.000 subscritores), e foi assim também que pudemos entrar em contacto com os promotores dessa celebração, em geral muito jovens. Recente é também a publicação na mesma página de fotografias de missas celebradas no país – com muitos jovens, acólitos, coristas e tantas mantilhas.

No que respeita à tradição, a Fraternidade de São Pio X levou aí a cabo uma missão em 2003, que veio a conduzir a uma celebração constante mas episódica dirigida a uma vintena de fiéis. Para conseguirmos ter uma ideia mais precisa do que aí se passa, tratámos de aproveitar ao máximo os recursos hoje postos à nossa disposição pela internet e pelas redes sociais.

Segundo nos foi dito pelos fiéis, a posição dos bispos varia de diocese para diocese. Assim, em Jacarta, a hierarquia eclesiástica jamais se dignou responder às cartas dos peticionários, e tão-pouco às suas chamadas telefónicas ou pedidos de audiência. Por isso, os sacerdotes que aí se encontram a celebrar são frequentemente missionários estrangeiros, e os seus fiéis evitam falar sobre estas missas para evitar que se excitem os humores diocesanos. Em Bandung, onde a missa é mensal, o acordo do bispo conseguiu-se em 2009. Em Pontianak, quem celebra é o arcebispo emérito, Mons. Hieronymus Herculanus Bumbun, capuchinho.

Não obstante os jesuítas – que têm uma forte influência no país, como acontece também nas Filipinas – tenham desenvolvido grandes esforços na Indonésia para contrastar o Motu Proprio (aliás, em 2007, o Cardeal Darmaatmadja, que então era ainda o arcebispo de Jacarta, não hesitou em declarar que o Summorum Pontificum não se aplicava na sua diocese), a revista jesuíta “Hidup” (“A Vida”) consagrou-lhe mesmo assim um artigo, em Outubro de 2011. Este artigo, que é aliás bem pedagógico, teve o objectivo óbvio de calar a curiosidade que o texto de Bento XVI estava a suscitar entre os fiéis. Aí, podia ler-se, por exemplo, esta enormidade: que um Motu Proprio não é … mais do que uma “iniciativa privada” do Sumo Pontífice através da qual ele usa a sua autoridade para fazer ouvir “a verdade em que ele acredita” – quando, na realidade, e em vez disso, se trata de uma acto que ele considera a tal ponto importante que faz saber, como Vigário de Cristo, que o adopta “por movimento seu própria” (motu proprio), por meio de uma decisão pessoal. Depois de percorrer, com propriedade, as deriva litúrgicas modernas e o recurso que pode ser oferecido pela forma extraordinária, a revista não deixa todavia de concluir que “numerosos grupos de chefes da Igreja vêem com maus olhos esta missa”, porque tanta insistência sobre a unidade (do rito tradicional, igual em todo o mundo) pode dar “lugar a um risco real de conflito e de discórdia”. Por fim, a introdução da forma extraordinária nas paróquias é aí considerada “muito mais complicada” do que vem dito no texto pontifício, porque a pastoral não se pode abster “de tomar em conta os aspectos psicológicos, sociológicos, antropológicos, políticos” dessa medida.

Esta hostilidade, mais ou menos aberta, de uma parte da hierarquia católica indonésia em relação à liturgia tradicional parece, no entanto, não surtir mais do que um efeito limitado sobre os fiéis, em particular entre os jovens, come bem o ilustram as fotografias que aqui publicamos. Aliás, em Bandung, um dos promotores da aplicação do Motu Proprio Summorum Pontificum é o próprio sobrinho do Cardeal Darmaatmadja…



II – As reflexões da Paix liturgique

1) Sendo uma minoria dentro da minoria, e como acontece frequentemente nestes casos, os católicos indonésios atraídos pela liturgia tradicional dão provas de uma grande solidariedade. Entre eles próprios, mas também com toda a família Summorum Pontificum. Os pouquíssimos recursos de que dispõem – recentemente estavam à procura de um jogo de candelabros na internet – são compensados pela sua enorme determinação e entusiasmo.

2) A quantos ainda insistem em reduzir a questão relativa à liturgia e à tradição a uma precisa zona geográfica e a uma dada categoria social, encontram no exemplo indonésio um desmentido retumbante. Foi realmente à Igreja universal que Bento XVI pretendeu devolver o uso da liturgia latina e gregoriana, e é realmente toda a Igreja universal que, pouco a pouco, a vem descobrindo. Se os esforços dos peticionários europeus são tantas vezes meritórios – pensemos nos fiéis portugueses que ainda são privados do Motu Proprio –, o que não se dirá dos esforços envidados por estes fiéis de Bandung ou Pontianak? Aí, não há a peregrinação de Chartres, para encherem de novo os depósitos com esperança, nem mosteiro tradicional, onde possam ir reabastecer-se, e nada de comunidades Ecclesia Dei, a quem  pedir conselho ou assistência. Não têm senão a fé, o direito canónico … e a internet, para poderem encontrar um apoio para esta sua iniciativa, pouco compreendida, e, por isso, mal vista pelo clero.


3) “Numerosos grupos de chefes da Igreja vêem com maus olhos esta missa”, porque tanta insistência sobre a unidade (do rito romano) pode dar “lugar a um risco real de conflito e de discórdia”: querer um rito de unidade católica acarretaria um risco de divisão! Esta observação da revista dos jesuítas indonésios é muito característica e põe a descoberto o fundo do problema, que é ideológico: de um lado, uma pseudo-unidade ao redor de um novo rito multiforme e impossível de apreender ou conter dentro de certos limites; do outro, a unidade católica tradicional em torno de uma missa romana mais do que milenar. Teríamos então que, supostamente, a unidade “more romano” poria em perigo a “unidade” dos inovadores? Dizeres que mais parecem saídos de um folheto diocesano apressado. 50 anos depois, há ainda quem, apesar de não cessar de falar de inculturação, de adaptação e de diferenciação, aparece a invocar o argumento da unidade e continua a não ter pejo em fazer passar estas mistificações de uma conferências episcopais à outra. E são também esses os mesmos argumentos e preconceitos apresentados com o fito de impedir que se instale uma verdadeira paz nas nossas paróquias.

4) Graças a Deus que, de Porto Rico a Jacarta, os fiéis, animados pelo sentido da fé, tanto no campo da liturgia como naquele do catecismo, conseguem, apesar de tudo e de todos, ir mantendo a transmissão, outro nome para a tradição. Note-se bem que este movimento é, em primeiro lugar, fruto do esforço dos leigos e das famílias. Queira-se ou não, a “promoção do laicado” desejada pelo Concílio Vaticano II, acabou por dar frutos magníficos, e frutos que os guardiães do “espírito do Vaticano II” jamais poderiam esperar: a manutenção da missa e do catecismo tradicionais. A realização mais palpável conseguida pelo decreto Aposotlicam actuositatem, dedicado ao apostolado e ao papel dos leigos, é o nascimento do povo Summorum Pontificum.