Carta 86 publicada a 29 janeiro 2018
A MISSA DE PAULO VI: UMA FORMA RITUAL INFORME?
A Missa de Paulo VI: uma forma ritual informe?
Elaborada no contexto teológico do fim dos anos sessenta, com as mentalidades religiosas dessa época, a reforma litúrgica de Paulo VI não conseguiu cumprir as promessas optimistas que se prospectava, bem longe disso. No entanto, se muitos são os que hoje concordam em dizer que ela fracassou largamente, poucos são os que imaginam ser possível elaborar com precisão um balaço realista. Quanto a nós, fomo-nos empenhando em levar a cabo uma análise crítica de alguns dos rituais desta reforma: o do baptismo (carta 413), o da confirmação (carta 471) e o das exéquias fúnebres (carta 443).
Agora, gostaríamos de dirigir o nosso exame ao coração da reforma , a missa promulgada pela constituição apostólica Missale Romanum, de 3 de Abril de 1969. Muitos foram os que o fizeram antes de nós, a começar pelos Cardeais Ottaviani e Bacci no seu “Breve exame crítico do Novus Ordo Missae”, logo em 1969, mas pareceu-nos oportuno contribuir aqui para uma reactualização dessas análises, agora que essa reforma se prepara para cumprir meio século de existência.
Dedicaremos a
este esforço uma série de três cartas, considerando tanto o aspecto ritual, ou
melhor dizendo, a-ritual, do novo missal – que é o objecto desta primeira carta – como o
seu conteúdo propriamente dito. De facto, o exame do novo missal faz aparecer desde
logo um aspecto cerimonial realmente espantoso: em comparação com o missal
anterior e com as demais liturgias católicas (orientais, ambrosiana, etc.), a
nova missa romana já não é em bom rigor e verdadeiramente um rito. É como uma forma sem forma.
O conjunto ritual do cristianismo organizou-se ao longo da Antiguidade partindo
do comando de Cristo: «Fazei isto em memória de Mim!», e das cerimónias de
fracção do pão das comunidades apostólicas. Entre os séculos VI e XII, os ordines romani são testemunho do
considerável desenvolvimento desse mundo cerimonial ao longo da Antiguidade
tardia e da Alta Idade Média, paralelamente ao do rico tesouro da catequese
patrística dessas mesmas épocas. Transmitida por mão da Idade Média monástica e
das catedrais, esta herança foi zelosamente recolhida pela Roma da
Contra-Reforma. Senhora de uma consciência agudíssima do facto de que a
liturgia, e muito especialmente aquela romana, é veículo de uma tradução
concreta do dogma no âmbito dos sacramentos e da oração (lex orandi, lex credendi), a época tridentina teve como
especificidade no domínio do culto, a clarificação e a canonização do Ordo, isto é, da ordenação das
cerimónias.
Chegados ao século XX, um duplo movimento, por um lado, de “regresso às fontes”
– a saber, uma suposta recuperação das forma litúrgicas antigas para lá dos
“acrescentos” e “sobrecargas” posteriores – e, por outro, de adaptação aos
tempos presentes, tomou-se de antipatia com o “fixismo” das regras litúrgicas, ao mesmo tempo, aliás,
em que também se atacava o “fixismo” das formulações dogmáticas. O cuidado
meticuloso com que os livros litúrgicos tradicionais ordenavam a liturgia nas
respectivas rubricas (indicações relativamente à ordem a seguir nas cerimónias
e que eram impressas a vermelho, rubrae)
foi logo visto como algo totalmente em desuso. Esta explosão não levou mais do
que poucos anos. Desde as primeiras etapas da reforma conciliar da missa, a
criatividade extravasou, e a do topo (a Comissão para a Aplicação da
Constituição sobre a Liturgia) foi exponencialmente multiplicada pela da base,
como o ilustram bem os famosos “padres novos” de Michel de Saint-Pierre. As
contínuas modificações que se foram sucedendo de 1964 (instrução Inter oecumenici) até 1968 – pense-se
nas “rubricas de
I – Um universo ritual pulverizado
O impacto de passar de um missal a outro, do ponto de vista das regras a
seguir, causa um grande abalo: é como se passasse para um outro mundo. Em lugar
dos gestos e posições do corpo estritamente determinados segundo uma prática
imemorial, as novas rubricas passam a ser meras indicações genéricas – e,
amiúde, tão-só simples sugestões. A tal ponto, que a aprendizagem da missa, que
no caso dos sacerdotes que celebram a missa tradicional ocupa um amplo espaço
concreto, já não existe nos actuais seminários onde se ensina a missa de Paulo
VI. E o que vale para o rito vale para o sentido das traduções dos textos: uma
certa liberdade pessoal é vista como legítima, e a indeterminação que daí
resulta é considerada à guia de algo sem grande importância, ou até mesmo
desejável, para melhor “se aderir à vida”.
Seja apenas um exemplo relativo ao início da celebração da missa:
a) Os gestos
- No missal tradicional: «O sacerdote sobe até ao centro do altar, sobre o qual depõe o cálice na direcção do lado do Evangelho, extrai o corporal da bolsa, que desdobra sobre a parte central do altar, e sobre ele coloca o cálice coberto com o véu, deixando a bolsa do lado esquerdo, etc. […] Desce os degraus até ao sopé, volta-se para o altar e permanece de pé ao centro, com as mãos juntas diante do peito, os dedos juntos e em riste, com o polegar direito cruzado sobre o esquerdo (o que sempre deve fazer quando junta as mãos, excepto após a consagração), a cabeça descoberta, tendo feito à cruz ou ao altar uma inclinação profunda, ou uma genuflexão, se o Santíssimo Sacramento estiver presente no sacrário, e inicia de pé a missa. […] Enquanto diz o Aufer nobis, o celebrante, de mãos juntas, sobe até ao altar, etc. […] Inclinado a meio do altar, com as mãos juntas postas sobre o altar, de modo a que os dedos mindinhos toquem a parte frontal do mesmo, enquanto os anulares se apoiam sobre a mesa do altar (o que sempre se deverá observar quando apoia as mãos juntas sobre o altar), etc. […] Ao proferir “os corpos cujas relíquias estão aqui”, beija o altar ao meio, com as mãos estendidas apoiando-se sobre o altar a igual distância de cada lado, etc. […] Na missa solene, coloca incenso no turíbulo por três vezes, enquanto diz: Ab illo benedicaris, “Sejais bendito por aquele”, etc.»
- No missal novo: «O sacerdote aproxima-se do altar e venera-o com um beijo. Logo a seguir, se parecer oportuno, incensa a cruz e o altar, andando em volta dele. […] Em seguida, o sacerdote, voltado para o povo e abrindo os braços, saúda-o, utilizando uma das fórmulas propostas.»
b) As palavras
- No missal tradicional: «Uma vez
feita a devida reverência, faz o sinal da Cruz sobre si e, salvo se alguma
rubrica particular dispuser de maneira diferente, diz em voz alta: In nomine
Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen. Em seguida, de mãos juntas
diante do peito, dá início à antífona: Introibo ad altare Dei. Os ministros respondem: Ad Deum qui
lætificat juventutem meam. Em seguida, alternando com os ministros, diz:
etc. (Sl 42) […] Enquanto sobe ao altar, diz em voz submissa: Aufer nobis … “Pedimos-vos,
Senhor, afasteis de nós as nossas iniquidades, para que, com uma alma pura,
mereçamos entrar no Santo dos Santos. Por Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém.” Em
seguida, de mãos juntas apoiadas sobre o altar, diz: Oramus te, Domine, “Nós
vos suplicamos, Senhor, pelos méritos dos vossos santos, (beijando o centro
do altar) cujas relíquias aqui se encontram, e de todos os demais santos,
vos digneis perdoar todos os nossos pecados. Amém.” Na missa solene, não se
tratando de uma missa pelos defuntos, o celebrante, antes de iniciar a antífona
do Intróito, abençoa o incenso dizendo: Ab illo benedicaris, etc.»
- No missal novo: [Após o sacerdote
ter beijado o altar e o ter incensado, se assim o entender,] «Terminado o
cântico de entrada, sacerdote e fiéis, todos de pé, benzem-se com o sinal da cruz. O sacerdote diz:
“Em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo [...] Amém.” Em seguida, o sacerdote, voltado para o povo
e abrindo os
braços, saúda-o, utilizando uma
das [cinco] fórmulas propostas», por
exemplo: “A graça de Nosso
Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai, etc.” […] Pode também o próprio sacerdote
ou outro ministro fazer aos fiéis uma introdução, com brevíssimas
palavras, à Missa desse dia.» Depois, «o sacerdote convida os fiéis ao acto
penitencial com estas palavras ou outras semelhantes: “Irmãos: Para celebrarmos
dignamente os santos mistérios, reconheçamos que somos pecadores”» Ao que se
seguem quatro possibilidades:
1. «Confesso a Deus todo-poderoso, etc.»
2. «Tende compaixão de nós, Senhor, etc.»
3. «Senhor, que fostes enviado pelo Pai, etc.», com algumas variantes em seguida.
II – A multiplicação das livres escolhas
Observa-se, portanto, que se vão multiplicando as alternativas à escolha, sucedendo-se as opções, umas embutidas nas outras. Isso mesmo se confirma ao longo do resto da celebração:
a) Por altura da liturgia da Palavra, ao fim da primeira leitura, pode observar-se, «se for oportuno», um momento de silêncio. O cântico de aclamação ao Evangelho é habitualmente o Alleluia. Pode-se, ou não, proceder à incensação e transportar velas para o Evangelho.
b) A profissão de fé pode ser feita usando o símbolo Niceno-Constantinopolitano ou o dos Apóstolos.
c) A oração universal comporta dezenas de introduções possíveis alternativas, que também não excluem a possibilidade de se usar outras fórmulas, e o mesmo vale para as orações conclusivas.
d) O transporte das oferendas até ao altar (e de outros dons destinados a prover às necessidades da Igreja e dos pobres) pode ser organizado livremente. O sacerdote pronuncia, em voz alta ou baixa, as palavras da apresentação das oferendas: «Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, etc.», às quais o povo pode responder com uma aclamação: «Bendito seja Deus para sempre.»
e) Conquanto a tendência da liturgia romana – e o mesmo vale para outros ritos católicos – sempre tenha sido, desde a Antiguidade, a da redução dos textos que constituem o coração da Missa, seguramente por razões ligadas à manutenção da ortodoxia, agora, chega até a ser difícil enumerar os novos prefácios: à roda de cinquenta para o temporal, mais umas dezenas para o santoral, comuns dos santos, defuntos, missas votivas, missas de casamento e de profissão religiosa.
f) E sobretudo, a oração eucarística introduzida pelos prefácios era (e, sem dúvida, sempre o tinha sido) única, mas, agora, o número oficial das orações eucarísticas é de dez (onze no Brasil): quatro principais (cinco no Brasil), duas para a reconciliação, três para as missas das crianças, e uma para circunstâncias particulares, em função das quais se pode escolher um de entre quatro prefácios – 1) A Igreja a caminho da unidade; 2) Deus guia a Sua Igreja no caminho da salvação; 3) Jesus, caminho para o Pai; 4) Jesus passou fazendo o bem – aos quais correspondem quatro orações de intercessão (o equivalente ao Te igitur do cânone romano), dispostas na segunda parte da oração eucarística, a seguir à consagração, à semelhança das orações eucarísticas II, III, IV. Mas há ainda outras, já que algumas conferências episcopais, designadamente por ocasião de certos acontecimentos particulares, pediram a aprovação de orações eucarísticas específicas.
g) A consagração
é seguida de uma de entre três aclamações à escolha.
h) A introdução ao Pater noster
conhece três variantes, mas é possível usar outras. A paz e a caridade mútuas
expressam-se «segundo os costumes locais». Após o Agnus Dei, duas orações à escolha para o sacerdote.
i) A bênção do povo reveste duas formas simples alternativas, e também pode
dar-se em modo solene com múltiplas introduções tripartidas alternativas (cinco
alternativas segundo os diferentes tempos litúrgicos, e várias outras para
ocasiões particulares), entremeadas cada uma das partes por um Amém.
A confusão das línguas
A explosão do rito tornou-se ainda mais palpável com a desaparição do latim. A
contagem do número de traduções nas línguas e dialectos diversos em que hoje se
celebra a liturgia, que curiosamente ainda se diz latina, já vai em
Aconteceu deste modo que as conferências episcopais se assenhorearam de
liberdades com consequências de monta, sendo a mais célebre a da tradução do pro multis (sangue derramado «por
muitos») na consagração do Preciosíssimo Sangue, traduzido como “for all”, “per tutti”, “pour tous”,
“por todos”, ou ainda aquela do consubstantialem do Credo, que, em
francês, passou a “de même nature”.
Liberdades que, em certos casos, tinham em mira uma inculturação da liturgia
(instrução Varietates legitimae, de
25 de Janeiro de 1994). Assim é que na China, querela dos ritos chineses oblige, se passou a celebrar desde 15 de
Fevereiro de 1972 os antigos ritos de inspiração confuciana em honra dos
antepassados. Na Zâmbia, suprimiu-se a mistura da água no vinho, com o pretexto
de que não havia fundamento bíblico, apesar de tal prática haver sido condenada
pelo concílio de Florença, em tempos de heresia monofisita, por isso que a água
simboliza a humanidade de Cristo. O rito zairense, uma adaptação congolesa do
rito romano, promovido pelo Cardeal Malula, arcebispo de Kinshasa, e aprovado
em 1988, previa uma invocação dos antepassados e uma preparação penitencial
inseridas antes do ofertório, além de diálogos vários entre o sacerdote e o povo,
e gestos e movimentos ritmados.
Bem podemos denunciar o que se usa
chamar de “abusos” por parte de sacerdotes que fazem como se lhe antolha, mas o
facto é que é intrínseco à nova liturgia o estar aberta à criatividade. Desde
o momento em que o novo missal prevê que o sacerdote possa fazer a saudação
proferindo «por exemplo» esta ou aquela fórmula à escolha, ou que se lhe sugira
como mero «exemplo» uma certa admonição que lhe compete pronunciar, ele vê-se
convidado pelo próprio livro à criação pessoal. A inserção por parte de cada ministro
de admonições ou comentários pessoais, que em lugar algum está proibida, e que,
aliás, este novo estilo cultual suscita, torna-se de facto algo natural. As
tentativas de restauração que se conheceram desde 1985, além de que se
mostraram, ou mostram, deveras aleatórias, encontram a resistência radical
desse carácter fluído e «vivo» da missa nova.
A missa nova, lex orandi ?
O famoso adágio lex orandi, lex credendi, “a lei da oração regula a lei da fé”, explica-se pelo facto de que
todos os elementos da disciplina universal da Igreja romana são, pelo que
contêm em matéria de fé e de moral, uma das expressões do magistério ordinário
universal: a Igreja de Pedro não pode induzir em erro os seus fiéis pelo modo
segundo o qual lhes ordena que rezem. Esta expressão da fé una implica
necessária e naturalmente uma certa canonização (1) dos meios que lhe
servem de veículo.
Nem por isso se esquece que a explosão do rito trazida pela reforma vem depois
da modificação do próprio conteúdo da mensagem, tema que estudaremos nas
próximas duas cartas. Todavia, num contexto generalizado – o de Maio de 68 – de
relativização da regra dogmática, este abandono pela Igreja latina do seu
universo ritual tradicional contribuiu em muito para enfraquecer o carácter do
culto enquanto veículo da profissão da fé romana. Esta nova subjectividade,
manifestada por aquela do próprio do rito, não deixa de levantar problemas do
ponto de vista do rigor e do valor doutrinal das cerimónias novas. Seja-nos
permitido aventar a seguinte hipótese: ao carácter “pastoral”, isto é, não
propriamente dogmático (infalível), do concílio Vaticano II, corresponde o
carácter “pastoral” da nova liturgia que dele resultou, na medida em que esta
já não pretende ser veículo pela oração de uma regra suprema da fé. Muito
simplesmente, porque não procura ser, no sentido mais forte do termo, uma lei
da oração, uma lex orandi.
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(1) No sentido de codificação.