Carta 95 publicada a 6 março 2019

O afrouxamento da pregação dos últimos fins ou novíssimos no novo ritual das exéquias.

(Quarta parte do nosso estudo comparativo entre as práticas antigas e modernas)



Causa muita impressão o modo como o novo ritual das exéquias – completado em 1965 e publicado em 1969 (1) – veio afrouxar notavelmente a pregação que antes, na lex orandi, se reservava ao juízo particular, purgatório e ao risco da condenação eterna. E isso é ainda mais notório na prática habitual seguida à luz do novo ritual, a qual parece considerar que a mensagem evangélica, transmitida de modo tradicional pela Igreja, se tornou agora incapaz de ser recebida por parte dos homens de hoje, em virtude de algumas santas asperezas (2). Tudo se passa como se, nesta nova pastoral dos defuntos, se temesse anunciar claramente as verdades incómodas relativas à salvação: o juízo particular, o purgatório, o risco da condenação. Mais ainda: como escreve Guillaume Cuchet, citado mais abaixo (Comment notre monde a cessé d’être chrétien), tudo se passa como se os clérigos tivessem eles próprios deixado de acreditar em tudo isso.

 

 Uma grande discrição a respeito do juízo particular, juízo geral, inferno e purgatório


 «As exéquias devem exprimir melhor o sentido pascal da morte cristã. Adapte-se mais o rito às condições e tradições das várias regiões, mesmo na cor litúrgica» (Sacrosanctum Concilium, n. 81). Na realidade, as exéquias situam-se no primeiro momento do “mistério pascal”, o da morte. Hoje, porém, prefere-se acentuar apenas o seu termo, a ressurreição, o que leva a esvaziar o justo temor em face do juízo particular e do juízo final. Tradicionalmente, a Igreja coibia-se de vir canonizar sem um juízo prévio todas as pessoas cujos restos mortais se depositavam na terra (3), o que é bem traduzido pela liturgia das exéquias na sua forma extraordinária. Com uma única excepção, a das crianças baptizadas, para quem a missa do funeral pode ser substituída por uma missa festiva, por exemplo a dos anjos (4). Os corpos destas crianças baptizadas, mortas antes da idade da razão, outrora, eram preferencialmente depostos num lugar especial do cemitério, onde se podia, não rezar por elas, mas antes invocá-las como se fossem pequenos anjos.


O desejo de dar um carácter mais festivo à celebração dos funerais em geral, levou a que se suprimisse aqueles textos que «reflectiam uma espiritualidade negativa com sabor medieval», como explicava A. Bugnini (5). Foi assim que se eliminou a admirável sequência do Dies irae, que, na liturgia tradicional, se insere após o Gradual e o Tracto e antes do Evangelho, e que é um poderoso poema sobre o derradeiro Juízo: «Dia de ira, aquele dia/volve o mundo em cinza fria:/diz David e a Sibila./Que terror não há-de haver,/quando Deus comparecer/para julgar com rigor!» Do mesmo modo, foi ainda posto de parte o responso Libera me, que se cantava no momento da encomendação diante dos restos mortais, no final da missa das exéquias: «Livrai-me, Senhor, da morte eterna, nesse dia temível, quando céus e terra se revirarem, quando vierdes julgar o mundo pelo fogo. Tremo e tenho medo diante do juízo que há-de vir e da ira também vindoura. Naquele dia de ira, de calamidade e miséria, dia tremendo e amargo. Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno, entre os esplendores da luz perpétua.» O Libera me era precedido por uma admonição que também desapareceu: «Senhor, não procedais ao juízo do teu servo, pois nada pode ser justificado diante de Vós, se não fordes Vós mesmo a conceder-lhe o perdão de todos os seus pecados. Não submetais, por isso, vos rogamos, a uma sentença estrita aquele que vos é encomendado pela súplica da verdadeira fé cristã, mas que, socorrido pela vossa graça, possa ele escapar ao juízo de condenação, ele que, em vida, recebeu o sinal da Santíssima Trindade.»


A súplica pela salvação do defunto não está ausente das orações novas, inclusive daquelas que foram previstas para os não praticantes. Parece, todavia, que há uma espécie de respeito humano que leva a invocar sobremaneira a indulgência, o repouso, e a fortiori a “luz” e o “refrigério” a que aspiram as almas do purgatório por entre os seus sofrimentos. Nos novos textos, depois, não se trata senão do “afastamento” de Deus destas almas, isto é, dito doutro modo, não se evoca com propriedade senão a pena de dano, calando-se em geral sobre a pena de sentido, ainda que, no purgatório, ela seja tão-só espirital.


Na versão francesa do ritual, nota-se aliás que, salvas raríssimas excepções (uma das colectas previstas para um Papa defunto, por exemplo), a própria noção de alma aparece afastada, considerada talvez demasiado difícil para os nossos contemporâneos.

Por entre numerosas orações à escolha, as orações antigas que se conservaram foram também elas sujeitas a transformação:


·         A pós-comunhão da missa tradicional de defuntos rezava assim: «Faz, Deus todo-poderoso, que a alma do teu servo (tua serva) N., que agora deixou este mundo, purificada por este sacrifício e livre dos seus pecados, alcance a indulgência e o repouso eterno.» Na nova liturgia, passou a ser assim: «Acolhei benignamente, Senhor, este vosso servo N. na sua passagem deste mundo para Vós e, pelo poder redentor do sacrifício de Cristo, purificai-o de todas as culpas, para que possa tomar parte na alegria eterna da ressurreição» (versão portuguesa); «Faz, Deus todo-poderoso, que a alma do teu servo (tua serva) N., que agora deixou este mundo, purificada por este sacrifício e livre dos seus pecados, receba a alegria eterna da ressurreição». Por que motivo se expurgou a noção de indulgência a que antes se fazia referência?


·         Por entre as orações de colecta à escolha, a colecta tradicional, que veio a ser recebida na nova liturgia, dizia: «Ó Deus, a quem é próprio sempre perdoar e usar de misericórdia, imploramos-te por esta alma do teu servo (tua serva) N., que agora chamaste a deixar este mundo: não a deixes entregue ao poder do inimigo e jamais a esqueças, antes ordena aos teus santos anjos que a acolham e a introduzam na pátria celeste, a fim de que, tendo acreditado e esperado em ti, ela não deva sofrer as penas do inferno, poenas inferni, mas possa entrar na posse das alegrias eternas.» Esta mesma oração ficou agora assim: «Senhor, nosso Deus, sempre disposto a compadecer-vos e a perdoar, escutai benignamente as súplicas que vos dirigimos pelo vosso servo N., que (hoje) chamastes deste mundo à vossa presença; e, porque acreditou e esperou em Vós, conduzi-o à sua pátria verdadeira, para tomar parte nas alegrias eternas» (versão semelhante àquela francesa). A noção de alma, sem dúvida “incompreensível”, foi eliminada, e a súplica retroactiva – pois que todos os tempos estão presentes a Deus – pedindo que a graça não haja abandonado aquele por quem rezamos agora e que deixou este mundo, também não se manteve, sem dúvida porque demasiado complexa teologicamente.

 


Inovações imprudentes

 

Há ainda inovações que levantam algumas interrogações: 

·         Entendeu-se por bem tolerar, ainda que se continue a desaconselhá-la, a incineração pedida sem motivo ideológico (6). Havia de facto necessidade de prever expressamente textos litúrgicos específicos para serem usados no crematório, «quando o corpo do defunto já se encontra na sala crematória, ou noutro momento oportuno» (Celebração das exéquias, n. 161), ou como se lê na versão francesa, «antes que o corpo desça ao forno ou enquanto desce ou depois disso» (Rituel des funérailles, n. 294) ?


·         Era realmente conveniente introduzir uma missa «para uma criança ainda não baptizada»? A Igreja, mesmo não dando uma indicação precisa sobre o “estado” ou “lugar” reservado às crianças mortas sem baptismo, ensina claramente a necessidade do baptismo sacramental ou do baptismo de desejo para que se possa alcançar a visão beatífica: «Na presente ordem, não há outro meio [que não seja o baptismo] para comunicar esta vida à criança que ainda não tem o uso da razão. Entretanto, o estado de graça no momento da morte é absolutamente necessário para a salvação; sem esse não é possível chegar à felicidade sobrenatural, a visão beatífica de Deus (Pio XII, discurso de 29 de Outubro de 1951). O muito discutível documento contemporâneo que vai em sentido contrário não passa de um estudo proposto a título de opinião pela Comissão Teológica Internacional (“A esperança da salvação para as crianças que morrem sem baptismo”, 19 de Abril de 2007). Como quer que seja, a missa proposta pelo novo missal, conquanto nitidamente destinada a consolar os pais, vai ainda assim além disso: «chamastes esta criança à mesa do reino dos Céus»; «confortai-os [aos pais] com a esperança na vossa misericórdia infinita»; «dai-lhes [aos pais] a firme convicção de que seu filho, levado desta vida terrena, foi confiado à vossa infinita misericórdia» («tuæ sentiant divinæ pietati commissum [infantem ejus]»; na versão francesa: «Que eles [os pais] saibam confiá-lo ao teu amor»); e na encomendação final: «o entreguem confiadamente à misericórdia de Deus» (na versão francesa: «Com confiança, entregamo-lo a Deus»).


·         Na liturgia tradicional, o Allelulia era banido, pois, por muito repleta de esperança que possa ser a missa de Requiem, ela permanece essencialmente como sufrágio destinado a libertar do suplício do purgatório. A nova liturgia introdu-lo, desde logo nas missas de defuntos celebradas durante o tempo pascal, e, em certos locais, a prática estendeu este uso aos outros tempos, por exemplo mediante o emprego deste refrão do salmo 26 ou do salmo 41: «O Senhor é a minha luz e a minha salvação, Alleluia.»; acresce ainda o canto que precede o evangelho, a respeito do qual se diz apenas que o canto do Aleluia não é obrigatório (Celebração das exéquias, n. 78). Tudo considerado, seria até menos inadequado que se cantasse o Alleluia na Sexta-Feira Santa.


O efeito destas atenuações que amenizaram a evocação dos últimos fins foi tanto mais desastroso para a fé dos católicos quanto é certo que fazia parte de um movimento geral que pretendia a “desmitização” do antigo catecismo, de que «a pagar a conta foram em certa medida o juízo, o inferno, o pecado mortal, Satã», tendo o clero «cessado de modo assaz brutal de falar de todos estes temas delicados, como se ele próprio tivesse deixado de acreditar neles, ao mesmo tempo que triunfava no discurso uma nova visão de Deus, de tipo mais ou menos “rousseauniano”: o “Deus Amor” (e já não simplesmente “de amor”) dos anos 1960-1970» (7).

 


Os agravamentos na prática


 Deter-nos-emos agora sobre algumas das coisas significativas que se “vêem e ouvem” em tantas paróquias por ocasião dos enterros, e que nos fazem tomar bem consciência do número de ocasiões de evangelização desperdiçadas nos funerais que seguem o rito moderno, sempre que ainda se celebre algum rito.

 


Quando o sagrado dá lugar ao profano

 

Quantas vezes não ouvimos dizer que a missa dos funerais, em vez de ser celebrada para rezar pelo eterno repouso da alma do defunto e abreviar os seus sofrimentos no purgatório, é antes celebrada “em honra do defunto” ou, no melhor dos casos, “em memória do defunto”? Tal foi o caso, por exemplo, da missa do enterro do General Jaruzelski, último dirigente comunista da Polónia, que teve lugar na catedral de Varsóvia a 30 de Maio de 2014, e a respeito da qual se empregaram ambas as expressões: missa em sua honra e em sua memória! A igual conclusão se pode chegar julgando pelo acontece nas paróquias, de que colhemos alguns exemplos, que aliás estão longe de ser exaustivos.

 


a) Santo subito ou “o morto, esse herói”


 Trata-se do reflexo mais banal da perda do sentido do que é um funeral cristão: o enterrar que se transforma em “enceuzar”, como fazíamos notar numa carta anterior (440). A visão sobrenatural da morte como retorno da alma do defunto para junto do Divino Juiz desaparece em benefício da celebração da vida terrestre do defunto. Frequentemente, cabe reconhecê-lo, são as próprias famílias as responsáveis por esta apologia do morto (8). Todavia, deve também dizer-se que são poucos os sacerdotes que as travam nesta sua visão errada das exéquias, e há mesmo aqueles que as encorajam. Assim sendo, não só não se reza pelo eterno repouso da alma da pessoa desaparecida, mas chega-se por vezes a apresentar o defunto – que, às vezes, nem sequer punha os pés na igreja e vivia de maneira completamente pagã – como exemplo de “amizade”, “humanidade”, “dedicação”, “alegria de viver”, “tolerância”, etc., quando não se lhe pede até pelas necessidades terrestres dos vivos...

 


b) Ao som de “Highway to Hell”


 Em 2008-2009, inquéritos conduzidos sobre exéquias fúnebres inglesas e australianas mostravam que a maior parte dos cânticos pedidos para os enterros eram profanos. Em ambos os casos, entre o top 10 figurava o título “Highway to Hell” (“Auto-estrada para o inferno”) do grupo AC/DC. É certo que não se tratou então de um estudo dedicado exclusivamente aos funerais católicos, mas, por contágio e ignorância, cânticos desse tipo já contaminaram grandemente as exéquias católicas. No entanto, também houve numerosos bispos que, tendo tomado consciência do problema, publicaram decretos mediante os quais recordaram as normas litúrgicas e proibiram expressamente qualquer cântico profano durante as celebrações fúnebres. É, porém, difícil corrigir os maus hábitos, sobretudo quando não se lembra às famílias qual é o sentido próprio do funeral cristão e alguns responsáveis leigos das exéquias consideram ser “normal que haja na igreja canções ou música profana, uma vez que se trata de mostrar a compaixão pela família e amigos do defunto” (9).



c) E também se faz o enterro de maçons...


 O que se diz da música vale também para as intervenções orais que amiúde se intercalam na liturgia, a ponto de se estenderem mais do que as leituras. Poesias, evocações de memórias íntimas, histórias divertidas, gravações de voz do defunto, lavagem de roupa suja da família, etc.: vê-se de tudo! Ao invés de se rezar pelo defunto, conta-se a sua vida. Esta “profanação” litúrgica, no sentido literal do termo, atinge o paroxismo quando às palavras se juntam os gestos. Eis então que, por vezes, se chega a expor objectos queridos ao defunto junto do féretro – a sua bola de futebol, a guitarra, etc. Esta paganização dos funerais cristãos degenera ainda em escândalo público sempre que tais objectos lembram explicitamente o alinhamento do defunto contra a Igreja, em particular, a sua pertença à maçonaria. Um exemplo entre outros: a 14 de Novembro de 2013, celebraram-se na catedral de Perpignan as exéquias de um político local, um maçon notório, cujo caixão foi ostensivamente recoberto com os símbolos da sua obediência maçónica (10).



d) … mas não os desconhecidos!


 «A sua avó não era paroquiana aqui; não tenho tempo para tratar do seu enterro. Trate disso com a equipa dos funerais.» Esta frase proferida por um pároco resume bem o drama do relacionamento de hoje em dia entre muitos sacerdotes e o povo católico. Em virtude da pirâmide etária, o número de funerais a celebrar permanece constante mau grado a descristianização da população, ao mesmo tempo que não pára de diminuir o número de sacerdotes. Na verdade, para muitos sacerdotes, a celebração dos funerais é vista como uma constrição de que, podendo, se eximem sem hesitar. O resultado, claro está, traduz-se em alimentar o desconcerto e a incompreensão das famílias e, por muito ou pouco que estejam já afastadas da Igreja, em contribuir para que se separem ainda mais. É verdade que em certos conjuntos paroquiais rurais, onde o sacerdote tem a seu cargo 30, 40 ou mais paróquias, lhe é praticamente impossível celebrar todos os enterros. No entanto, há soluções que se podem tentar e que foram aliás experimentadas em certas dioceses, por exemplo, a de recorrer a sacerdotes ligados à tradição a quem, por ora, se recusa ainda de dar um serviço paroquial normal.

 


Responsabilidades partilhadas


 Os sacerdotes cedem frequentemente ao “tipo de procura” e aos pedidos dos “utilizadores” da liturgia, sejam eles cristãos praticantes ou não, ou mesmo a-religiosos, e há, com efeito, uma pesada tendência da sociedade contemporânea para banir qualquer sinal de luto. Foi assim que as funerárias foram ou vão abandonando a cor preta, substituindo-a pelo cinzento, que é considerado menos traumatizante. Mesmo o sucesso da cremação dos cadáveres, além de ser uma prática hostil ao catolicismo, que até há pouco a reprovava, e para além também da questão do custo, deve-se ainda ao facto de que, para os nossos contemporâneos, o que interessa é que se possa apagar do pensamento o mais rápido possível o aspecto degradante da morte e a sorte reservada pela natureza ao cadáver.


A liturgia habitual das paróquias adaptou-se infelizmente a este clima, e até o foi favorecendo, por exemplo, adoptando o roxo, mas até, por vezes, o branco (!), em detrimento do preto, ou então usando cânticos de tom festivo, na música ou na letra.


Cor branca dos paramentos, cantos festivos e uma velinha posta sobre o caixão são alguns dos elementos que contribuem para a difusão da falsa crença de que a glória do céu se adquire automaticamente, e ainda mais quando a pregação não vai além de um discurso que se limita ao mínimo a respeito dos últimos fins, para já não falar dos casos em que tal discurso é escamoteado por completo. Partindo do princípio erróneo de que a assembleia não está disposta a escutar a catequese da Igreja acerca destas questões – nomeadamente porque nela se contariam numerosos não praticantes e mesmo não crentes –, o conteúdo do que se diz durante a cerimónia corresponde sobretudo ao anúncio de uma entrada festiva do defunto no céu, no caso de se tratar de um praticante, ou, nos demais casos, quando o defunto estava afastado da prática dos sacramentos, considerações de tom humanista sem risco de chocar quem quer que seja.


Já no que respeita à noção do “escândalo” eventualmente causado pelo defunto – se morreu numa situação de pecado público –, essa é hoje uma noção desconhecida. De facto, enterra-se de maneira igualmente “festiva” e com todas as honras da liturgia tanto o homem político promotor de leis imorais, o marido indigno ou o artista blasfemo como um cristão fiel. O escândalo – no sentido estrito do termo: mau exemplo moral – está assim no facto de que um pecador notório, morto sem ter manifestado arrependimento, aparece considerado como se se tivesse “adormecido no Senhor”.

Eis, a este propósito, o testemunho de um sacerdote diocesano: «É difícil resistir à pressão das famílias, que, desconhecendo o sentido do funeral cristão, mostram a intenção de introduzir elementos profanos, e, por vezes, até mesmo provocadores, nas cerimónias do enterro. Acontece com frequência que os próximos do defunto se espantem com a minha recusa de inserir na cerimónia testemunhos desprovidos de ligação ao catolicismo, prestados por amigos sem preocupações sobrenaturais. O modelo “litúrgico” (!), entre aspas, fornecido pela televisão, e designadamente pelos filmes americanos para televisão, é devastador. Muitas são as pessoas que confundem a “liturgia” sincretista de Hollywood a que assistem na televisão com a liturgia católica...»

 

***


 Se a maioria das famílias que pedem um funeral cristão para um dos seus próximos se mostra hoje equivocada acerca do seu sentido, há porém muitas outras que, mesmo se afastadas da prática dominical, têm o desejo de uma verdadeira cerimónia católica, digna e bela. A morte de um ente querido é a primeira e a mais forte pregação sobre a brevidade da vida e a necessidade de preparação para o além. Além disso, as exéquias levam às igrejas muita gente que jamais lá vai, tornando-se por isso uma ocasião única de catequese, em especial a respeito dos fins últimos e do santo temor do juízo de Deus. Mais ainda do que os casamentos, elas mostram-se como uma ocasião para reacender nas almas o desejo de Deus. É por isso infinitamente triste que, hoje em dia, por causa de um demagógico medo de chocar, ou talvez, pura e simplesmente, por uma perda de fé, as tenham privado de todo e qualquer vigor apostólico.

 



(1) Ordo exsequiarum (edição típica 1969); Ritual Romano-Celebração das exéquias, conforme publicação da Conferência Episcopal Portuguesa. No que toca às versões francesas, referimo-nos em especial a: Rituel des funérailles 1. La célébration des obsèques,Desclée-Mame, 1972, 1995. Rituel des funérailles 2. Prières pour les défunts à la maison et au cimetière, Desclée-Mame, 1972, 1995, 1998.Lectionnaire pour la liturgie des défunts, Desclée-Mame, 1974, 1997. Missel des défunts : funérailles, messes des défunts, Desclée, 1974.

(2) Ver Laurent Jestin, “Foi douteuse, espérance trop sûre d’elle-même. La dérive des funérailles chrétiennes”, Catholica, Outono 2007.

(3) É esta a razão pela qual o cerimonial dos bispos (l 1, c 22, 6) previa que a oração fúnebre «em louvor de uma grande personagem defunta» devesse ser proferida não após o evangelho, mas antes da encomendação final, em hábito ordinário (in nigris).

(4) Cf., Rituale Romanun, tit. 7, c. 6 et 7, no que respeita ao lugar no cemitério e aos ritos festivos.

(5) La réforme de la liturgie, op. cit. p. 818.

(6) Instrução de 24 de Outubro de 1964.

(7) Guillaume Cuchet, Comment notre monde a cessé d’être chrétien, Seuil, 2018, pp.216, 265.

(8) Poder-se-ia objectar que as grandes orações fúnebres (Bossuet, Massillon, etc.) usavam amiúde o ditirambo para prestar homenagem ao defunto. Todavia, cumpre notar que os fins últimos eram sempre recordados, e por vezes de maneira tão terrível, que hoje seria insuportável, e que, além disso, a oração fúnebre não era tida como uma homilia, mas antes como um discurso sacro pronunciado in nigris pelo orador sagrado, não após o evangelho, mas no final da cerimónia, antes da encomendação do morto. De facto, as normas litúrgicas em vigor ainda dizem que, na homilia, se deve evitar «a forma e o estilo de um elogio fúnebre» (Celebração das exéquias, n. 79), mas a prática litúrgica revela outra realidade, pelos motivos acima expostos, entre os quais figuram, como se disse, questões teológicas e as próprias alterações litúrgicas introduzidas.

(9) Exposição de uma formadora litúrgica da diocese de Auch, França, relatada pela associação Pro Liturgia em 2011.

(10) Quando, em 1865, Mons. Darboy, arcebispo de Paris, houve por bem que, nos Invalides, se procedesse à encomendação do defunto durante o enterro do Marecha Magnan, Grão-Mestre do Grande Oriente, o Papa Pio IX, em carta de 26 de Outubro de 1865, logo deplorou o acto religioso levado a cabo, uma vez «que o defunto, durante a sua vida, teve a infelicidade de ocupar um cargo de chefia desta seita proscrita, vulgarmente chamada com o nome de Grande Oriente».