Carta 101 publicada a 23 dezembro 2019
A Missa Tradicional na China
Deixamos aqui a entrevista feita pelo nosso amigo Massimo Battaglia ao Padre Jean Song, um sacerdote chinês que actualmente está a terminar os seus estudos na Alemanha e cujo testemunho nos vem informar e esclarecer acerca da difícil situação dos católicos na China, mas também acerca das razões profundas que explicam a ligação destes fiéis à liturgia tradicional.
Massimo Battaglia – Como é que alguém hoje se torna sacerdote na China?
Père Jean Song – Diria que ser um verdadeiro sacerdote, católico e santo, jamais é coisa fácil. Mas, no meu entender, não existe diferença entre tornar-se sacerdote para um chinês, para um italiano ou francês. Ainda assim, não deixa de ser verdade que tornar-se sacerdote na China implica dificuldades particulares, nomeadamente em virtude das perseguições religiosas que afligem o nosso país. Todavia, estou também convencido de que as perseguições comunistas são menos graves para nós católicos do que as negações da autêntica fé e a profanação da liturgia.
Massimo Battaglia – Há hoje na China novas conversões?
Père Jean Song – Sim, Deo gratias, na China de hoje, há muitas conversões ao catolicismo, e se bem que os neófitos não sejam geralmente suficientemente bem preparados para o baptismo, o Espírito Santo está sempre a trabalhar na sua Igreja e protege-os e guia-os no seu caminho para a única verdade.
Massimo Battaglia – Pode ver-se uma semelhança entre a Igreja na China de hoje e a Igreja perseguida dos três primeiros séculos?
Père Jean Song – Penso que sim, há uma certa semelhança com a Igreja dos três primeiros séculos no seio do Império Romano. Todavia, se no tempo de Mao Tsé Tong, a Igreja se confrontava com uma perseguição violenta próxima daquela que conheceram os primeiros cristãos, hoje estamos sobretudo confrontados com uma perseguição insidiosa que tem por finalidade transformar a Igreja numa Igreja que já não seria a verdadeira Igreja de Cristo. É muito mais perigoso para os fiéis, que se encontram desorientados e podem por vezes abandonar a verdadeira fé sem mesmo se darem conta disso.
Massimo Battaglia – Como conheceu a missa tradicional?
Père Jean Song – Nasci numa família católica que conservou a fé por mais de 150 anos. Como sabe, a Igreja na China ficou isolada do resto do mundo, e portanto também de Roma, durante cerca de 30 anos, entre 1949 e 1978. Por isso, até aos anos 90, os sacerdotes que eram libertados da prisão continuavam a celebrar a missa segundo o rito antigo, pois, por essa altura, não conheciam nem o concílio nem a reforma litúrgica. No entanto, depois de 1990, eles passaram a integrar a corrente das reformas conciliares e passaram a seguir as mesmas evoluções que aconteciam nas demais regiões do mundo. Como nasci em 1986, não pude ter experiência pessoal do antigo rito, que deixou de se celebrar a partir dos anos 90. Mas quando era criança, os meus avós falavam-me sempre da beleza e da profundidade teológica do rito antigo. Lembro-me que, durante alguns anos, o meu avô deixara de assistir à missa, porque dizia que a missa moderna já não era um sacrifício, mas que se parecia em vez disso não ser mais do que uma simples recordação da Última Ceia do Senhor. Ele pensava isso sem jamais ter estudado teologia ou liturgia, mas a sua fé era tão forte que ele sabia distinguir bem as diferenças existentes entre a nova liturgia e aquele antigo rito que havia alimentado a sua fé desde a sua infância.
Massimo Battaglia – Os valores da cultura oriental dão muita importância aos rituais, ao sagrado e ao respeito…
Père Jean Song – Tem razão em dizer que a cultura e as tradições chinesas, fundadas sobre a doutrina de Confúcio, dava amplo lugar aos rituais e ao respeito pelos mais velhos, mas desde a revolução cultural que abalou a China entre 1966 e 1976, os valores tradicionais do mundo chinês foram quase totalmente eliminados. Talvez esta uma afirmação seja exagerada, mas de um ponto de vista cultural, os chineses modernos não são senão bárbaros incultos…
Massimo Battaglia – Entre os católicos chineses, há uma “resistência” à reforma litúrgica de 1970?
Père Jean Song – Não sei dizer se há, na China, uma “resistência” às inovações litúrgicas, pois a maior parte dos chineses não se dá conta das mudanças, mas sempre que regresso à China, as pessoas mais velhas pedem-me sempre que celebre a missa tradicional, pois sentem disso uma verdadeira necessidade espiritual tendo em conta o que hoje encontram nas celebrações em confronto com o que puderam conhecer outrora; mas há também muitos jovens que vivem num mundo vazio e que também sentem esta mesma necessidade, apesar de não terem conhecido a liturgia tal como era celebrada nos tempos antigos…
Massimo Battaglia – Então a procura da missa tradicional é algo de bem real na China?
Père Jean Song – Sim, e não apenas entre as pessoas mais velhas, mas igualmente entre muitos jovens que me pedem que a celebre. Sem dúvida, este desejo representa em parte a nostalgia de um passado que na China foi revolvido, mas é sobretudo a afirmação de um desejo de se poder rezar em perfeita harmonia com a fé católica.
Massimo Battaglia – Como foi que aprendeu a celebrar a missa tradicional?
Père Jean Song – Sempre tive interesse em aprendê-la, nomeadamente por causa do amor do meu avô pela missa tradicional. Foram os numerosos pedidos de celebração desta missa que me convenceram a celebrá-la. Foi assim que recebi uma formação com um sacerdote amigo.
Massimo Battaglia – Pensa que a missa tradicional ainda é importante para os tempos vindouros?
Père Jean Song – Estou convencido de que tem um importante papel a desempenhar. Não somente por causa da beleza exterior, mas sobretudo em virtude do adágio lex orandi, lex credendi: a missa tradicional revela a sã doutrina da Igreja Católica e é um modo muito vigoroso para combater a heresia do neoluteranismo e do neomodernismo que nos assaltam. Por outro lado, por parte dos fiéis, este é um pedido justo e adequado para a sua santificação e para a santificação do mundo. Como pastores, temos o dever de contribuir para a difusão da graça por meio dos sacramentos.
Massimo Battaglia – Porque acha que esta missa atrai tantos jovens, muitos dos quais haviam abandonado a prática religiosa?
Père Jean Song – Não tive experiência pastoral entre os jovens no meu país, e não sei dizer por que motivo a missa tradicional os atrai a este ponto. Mas sei que na China, há muitos jovens que desejam viver a sua fé seriamente, não obstante a ignorância e a laicização. Por conta das falhas e erros dos pastores, os jovens perdem a sua identidade católica. Então, há alguns que se dão conta de que é preciso retornar à tradição da Igreja e à espiritualidade católica.