Carta 108 publicada a 30 março 2021

OS ESCOLHIDOS DAS NAÇÕES

INQUERITO SOBRE O CARACTER UNIVERSAL DA ATRACCAO EXERCIDA PELA LITURGIA TRADICIONAL

Ouvimos dizer, em particular nos meios eclesiásticos oficiais e nos meios jornalísticos que lhes são próximos e favoráveis, que o “fenómeno tradicional” não passaria de um movimento “afrancesado, um fenómeno essencialmente franco-francês”.

Este tipo de afirmações gratuitas permite-lhes ir levando avante as suas posições ideológicas e não pôr em causa a sua consciência. Mas acontece que os factos demonstram que tais peremptórias asserções são, afinal, inexactas, pura teimosia!

Para além das numerosas Cartas que pudemos publicar sobre a liturgia tradicional nos quatro cantos do mundo, é já desde 2018 que “Orémus/Paix Liturgique” vem também publicando, cada ano, um balanço universal com o desenho da geografia e do desenvolvimento da liturgia tradicional. Esta é bem viva e celebra-se regularmente em 90 países de todos os continentes, o que basta para mostrar a homens de boa vontade que insistir em reduzir o fenómeno tradicional a uns quantos nostálgicos do Velho Continente, como se fossem os últimos dos Moicanos, é, afinal, uma atitude política que permite aos inimigos da Paz continuarem a não enxergar a realidade da vida da Igreja do início deste terceiro milénio. Uma Igreja cuja componente tradicional é – e mesmo se isso não é mostrado pelos media oficiais – uma componente essencial da Igreja de hoje, e mais ainda da Igreja de amanhã. Heri, hodie, et in saecula, pois a própria natureza da Igreja é de ser tradicional!

Para os que têm olhos, mas não vêem, e ouvidos, mas não ouvem, como diz o Salmo, a entrevista que se segue, com Christian Marquant, nada irá mudar… E sem embargo … ela revela, com os números bem à vista, que em 2020, o movimento de rapazes a optarem pelo sacerdócio tradicional – e que se encontra em pleno crescimento – é observável hoje em dia em todas as partes do mundo, independentemente da língua ou cultura. Movimento que vem confirmar as informações fornecidas pelos nossos balanços anuais.

Pois, no final desta segunda década do terceiro milénio, uma coisa está já provada à saciedade: que a atração e o amor pela Tradição, tanto litúrgica como doutrinal, é algo de universal. E isso já não pode ser visto, por ignorância ou má vontade, como reduzindo-se apenas a algumas regiões do “velho mundo”. A “sensibilidade” tradicional é universal. Por “sensibilidade”, entendemos alguma coisa que exprime o “sentido”, o instinto da fé, o sensus fidei. São cada vez mais numerosos os que, mais novos ou mais velhos, descobrem a riqueza da catolicidade tradicional e se voltam decididamente para ela. E é apenas o começo…


Paix liturgique: O que o levou a realizar este estudo sobre os novos escolhidos que, em 2020, se orientaram no sentido do sacerdócio católico tradicional?

Christian Marquant: A princípio, foi um puro acaso… Chegou-me um documento, depois outro e outro ainda, vindos de institutos tradicionais, relativos ao início do ano de 2020, e interpelou-me a diversidade de proveniência de muitos dos rapazes que aí apareciam. Isso levou-me depois a querer saber mais e a investigar.


Paix liturgique: E onde procurou essas informações?

Christian Marquant: Depois de me ter interessado pelo facto destes jovens que entravam nas casas tradicionais de formação, como é natural, tentei obter os dados que pudesse encontrar junto dos grandes institutos tradicionais.


Paix liturgique: Ou seja?...

Christian Marquant: A Fraternidade São Pio X, a Fraternidade São Pedro, o Instituto de Cristo Rei e o Instituto do Bom Pastor, aos quais juntei o seminário asiático da Fidelidade Católica (cisão da FSSPX), pelos motivos que explicarei daqui a pouco.


Paix liturgique: E conseguiu as informações que procurava?

Christian Marquant: Em termos… Para a maioria das casas, a maior parte das informações encontra-se nos respectivos sites, na internet. Para as outras, e penso nas casas mais longínquas, na América ou na Ásia, a investigação foi mais laboriosa.


Paix liturgique: Então o estudo não pôde ser exaustivo?

Christian Marquant: Não, mas no que respeita à investigação que me interessava, isso não levanta qualquer problema. Mesmo tendo obtido apenas 95% das informações pretendidas, isso em nada altera as conclusões a que pude chegar.


Paix liturgique: Mas, antes de mais, o que entende por “os novos que entraram em 2020”?

Christian Marquant: Entendo os jovens que, em 2020, se candidataram pela primeira vez a um seminário tradicional esperando que este pudesse responder a uma vocação sacerdotal, sejam eles os que entraram já no ano de espiritualidade (também chamado propedêutico) ou os que iniciaram um período de discernimento, mas já não os que se encontram num segundo ano de discernimento.


Paix Liturgique: Mas sabe com certeza que, de entre esses, alguns não chegarão ao sacerdócio…

Christian Marquant: De facto, assim é. E é mesmo provável que mais de um terço de entre eles venha a abandonar este caminho tão exigente, alguns até bem cedo. Até ao compromisso do subdiaconado, o seminarista, assim como os seus superiores, podem chegar à conclusão de que esse não é o caminho a que Deus o chama. Mas, uma vez mais, estou convencido de que isso não é relevante para a minha investigação nem para os resultados deste estudo, que, à partida e especificamente, se dedica a quantos mostram um desejo de se aproximar hoje, em 2020, de um sacerdócio tradicional.


Paix liturgique: Quais então os resultados do estudo?

Christian Marquant: De entre muitos outros, creio haver dois particularmente importantes.*


Paix liturgique: O primeiro?...

Christian Marquant: É o grande número dos jovens que se mostram atraídos pelo sacerdócio tradicional! De facto, e mesmo prescindindo de um cálculo exaustivo e final, e até sem contar com as casas religiosas tradicionais (beneditinos, dominicanos, etc.) nem com as muitas outras casas assimiladas à nebulosa “Ecclesia Dei” ou ao universo “São Pio X”, chegamos ainda assim, em 2020, a cerca de 210 candidatos que se voltaram para o sacerdócio católico tradicional!…


Paix liturgique: Podemos considerar que é um número de peso?

Christian Marquant: Diria que sim, e bastante; e se o comparamos – mesmo reduzindo-o de um terço ou de metade, tendo em conta um possível discernimento – com o número das ordenações sacerdotais tradicionais em 2020, temos que, nos próximos anos, nos dirigimos para um considerável aumento de mais de 50% do total dos que, cada ano, serão ordenados no seio do universo tradicional!


Paix liturgique: Mas isso não acontece em todas as regiões do mundo…

Christian Marquant: Tem razão, e parece que, em certos países europeus, o número das ordenações tradicionais está até em regressão ou não aumenta, ainda que se perspective uma retoma. Já pelo contrário, e é o segundo ponto interessante do meu estudo, a internacionalização, diria mesmo, a quase universalização desta atração pelo sacerdócio católico tradicional que podemos constatar, irá engendrar, nos próximos anos, um importante crescimento das ordenações a nível mundial.


Paix liturgique: Crê que este número de 210 é o “máximo” a que se pode chegar?

Christian Marquant: Não, é apenas o número a que chegou a minha investigação, a qual, como já expliquei, não foi levada a cabo de modo exaustivo junto de todas as casas tradicionais. O que me leva a pensar que, provavelmente, se tivesse podido fazer uma investigação mais completa, teria obtido um resultado ainda maior, pelo menos da ordem dos 260 candidatos, e isto utilizando apenas as informações parciais que me chegaram fora do quadro da minha investigação.


Paix liturgique: E quanto ao segundo ponto que mencionou, o que nos pode dizer?

Christian Marquant: Em primeiro lugar, que hoje, o maior número dos jovens atraídos pelo sacerdócio tradicional ainda vem dos velhos países tradicionais. Penso, nomeadamente, nos Estados Unidos, com 57 candidatos, e na França, com 33.


Paix liturgique: Mas também os há que provêm de outros lados…

Christian Marquant: Sim, e até de “lados” que poderiam parecer improváveis.


Paix liturgique: O que nos pode dizer quanto ao continente americano?

Christian Marquant: Comecemos então pelo continente americano, que tem 96 dos 210 candidatos “2020” ao sacerdócio tradicional, ou seja, perto de 46%.


Paix liturgique: São 96 os candidatos provenientes dos Estados Unidos?

Christian Marquant: Não, apenas 57; os restantes 39 candidatos provêm de outros 9 países americanos.


Paix liturgique: Quais?

Christian Marquant: Desde logo, o Brasil, que conta com 16 candidatos, o que já de si é notável, mas não é a totalidade dos candidatos brasileiros, pois não contabilizei, por falta de informações, nem os da Administração São João Maria Vianney nem os de alguns seminários diocesanos abertos à liturgia tradicional.


Paix liturgique: E quais são os outros países?

Christian Marquant: Variados… vêm da Argentina ou de países ainda mais inesperados como Cuba, Nicarágua, Costa Rica ou a República Dominicana.


Paix liturgique: E o México?

Christian Marquant: O México é o caso mais estranho da minha investigação, uma vez que sabemos que aí a tradição é muito viva, e no entanto, os candidatos ao sacerdócio escapam ao quadro dos grandes institutos do universo tradicional. Porém, isso não significa que não haja jovens mexicanos atraídos pelo sacerdócio tradicional, mas apenas que os seus percursos passam por vias que não conhecemos bem: isso será objecto de outras investigações durante os próximos meses, depois do que estaremos em condições de dizer algo mais.


Paix liturgique: E depois da América?...

Christian Marquant: Depois da América, segue-se de perto a Europa, com 85 candidatos ao sacerdócio, ou seja, 40,5% do total.


Paix liturgique: Mas antes tinha aludido a uma diminuição das vocações na Europa?...

Christian Marquant: Não foi isso que quis dizer. O queria referir era que o número dos candidatos ao sacerdócio parece estar a diminuir em França. Já na Europa, em geral, esse número está em plena ascensão, e como no continente americano, têm uma procedência muito variada. De facto, os candidatos “2020” provêm de 18 países da Europa, tão diferentes como Malta, Croácia e Bielorrússia.


Paix liturgique: Trata-se de um fenómeno novo?

Christian Marquant: Tanto quanto sei, não é um fenómeno novo, mas é um fenómeno em crescimento, porque, consultando os meus arquivos recordo que no ano passado, os candidatos provinham de 14 países.


Paix liturgique: Então, o número de candidatos também cresceu?

Christian Marquant: No geral, a Europa apresenta um crescimento. Vem-me à mente o caso de Portugal, país em que contabilizei 5 novos candidatos “2020”, mas conheço actualmente  pelo menos 13 seminaristas portugueses já apostados em seguir o caminho sacerdotal… ao passo que há alguns anos, os candidatos portugueses ao sacerdócio tradicional, todos juntos, eram menos que os dedos de uma mão.


Paix liturgique: E a África?

Christian Marquant: O caso da África é complexo. Os jovens africanos provêm de 9 países – ou seja, mais três  do que em 2019 –, mas, ao mesmo tempo, há um número relativamente baixo de candidatos ao sacerdócio tradicional: apenas  contabilizei 12, vindo 1 candidato da África lusófona, de Angola, 5 da África anglófona e 6 da África francófona.


Paix liturgique: Tudo somado, parece pouco…

Christian Marquant: Sem dúvida, mas uma vez que estejam disponíveis as estruturas de acolhimento suficientes e adequadas, acredito que este movimento se amplificará. A dificuldade, agora, é a de conseguir apurar se o chamamento ao sacerdócio destes candidatos é firme.


Paix liturgique: Falta apenas perguntar-lhe a respeito da Ásia e do Pacífico…

Christian Marquant: Também aí, o número de países de onde vêm candidatos está em pleno crescimento e deixa entrever um aumento importante dos números nos anos vindouros.

Disse, logo no início, ter contabilizado os candidatos que se inscreveram no seminário da Fidelidade Católica, nas Filipinas, por duas razões: a primeira prende-se à escassez de informações, porque não conseguia recolher na Ásia todas as notícias de que precisava em virtude das mudanças ligadas a questões sanitárias e  aos encerramentos de fronteiras que tornavam as deslocações particularmente difíceis; a segunda prende-se ao facto de ter ficado surpreendido ao descobrir que o pequeno número de candidatos tinha uma grande variedade de proveniências.

Duas razões que me levaram a inserir na conta esta instituição, o que me permite juntar uma ilustração complementar à minha investigação.


Paix liturgique: E quais são os dados relativos à Ásia/Pacífico?

Christian Marquant: São algo semelhantes aos dados da África: poucos candidatos – apenas 16 –, mas com um número crescente de regiões de proveniência, pois são 7 os países de origem, e interessantes, como a China, o Vietnam, a Índia e a Coreia.


Paix liturgique: Antes de passarmos adiante, outra questão importante: como é que o conjunto destes jovens chegou ao conhecimento do universo tradicional?

Christian Marquant: Tem razão, porque estes 210 jovens rapazes provêm de muitos países. Relativamente à maioria, são países onde a tradição está bem viva e, em muitos casos, já desenvolvida – penso, como é óbvio, no caso da França ou dos Estados Unidos. Mas muitos – mais de uma dúzia – provêm de países onde a liturgia tradicional não se celebra!


Paix liturgique: E como foi que a conheceram?

Christian Marquant: Por vezes, durante os seus estudos ou por meio de amigos, mas as mais das vezes… por meio da internet, que é hoje o mais importante canal para a difusão da liturgia e para a reflexão de índole católica tradicional em regiões do mundo onde esta liturgia é ausente ou raríssima.


Paix liturgique: Este estudo deu-lhe ocasião para entrar em contacto com alguns candidatos?

Christian Marquant: Infelizmente com muito poucos, isto é, apenas com um punhado, e sempre por via electrónica, o que nem sempre permite uma comunicação completa.


Paix liturgique: O que retirou daí?

Christian Marquant: Duas lições. A primeira, a do extraordinário poder de atracção da liturgia tradicional, que responde à Fé e às exigências espirituais de homens vindos de todas as partes do mundo: vários foram os que me declararam que esta liturgia representava para eles a “quinta-essência” da sua fé, e também o latim, longe de ser um obstáculo, pensam ao invés que é um excelente meio para lhes elevar a alma e ajudá-los a apartar-se das turbulências espirituais quotidianas.

A segunda, a de descobrir que a dura prova que é para um jovem francês orientado para o sacerdócio tradicional deixar a França para ir para Wigratzbad, Écône ou Gricigliano, nada é quando comparada com o que isso representa para um indiano, um chinês ou um cubano, que, para corresponder à sua vocação, deve abalar da outra extremidade do mundo para vir encontrar uma casa disposta a acolhê-lo.

Cumpre pois que abandonemos a nossa visão umbilical, se quisermos pensar a sério no futuro da Igreja. Será, não há dúvida, um futuro católico, isto é, universal e tradicional. Importa pois trabalhar para que os institutos tradicionais, que ao momento são os melhores vectores para a formação de sacerdotes tradicionais, possam o mais cedo possível acolher os futuros escolhidos das várias nações nos seus próprios continentes.

* Indicámos estes dados em toda a boa fé, conquanto seja possível que aí haja alguns erros ou faltas de exactidão. Queremos, pois, agradecer a todos os que tiverem a bondade de nos enviar observações e correcções a este propósito.


QUADRO


América: Total 96 (45,7 %)

Argentina 7

Brasil 16

Canadá 4

Colômbia 1

Costa Rica 1

Cuba 1

México 2

Nicarágua 4

República Dominicana 3

EUA 57


Europa/Mediterrâneo: Total 85  (40,5 %)

Alemanha 10

Inglaterra 6

Áustria 1

Bélgica 1

Bielorrússia 1

Espanha 5

França 33

Hungria 2

Irlanda 4

Itália 2

Líbano 1

Malta 1

País de Gales 1

Polónia 4

Portugal 5

República Checa 2

Roménia 1

Eslováquia 1

Suíça 4


África: Total 12 (5,7 %)

Angola 1

Benim 1

Camarões 1

Congo Brazzaville 1

Congo Kinshasa 1

Gabão 2

Gana 1

Quénia 1

Nigéria 3


Ásia/Pacífico: Total 16 (7,6 %)

Austrália 4

China 1

Coreia 2

Índia 2

Nova Zelândia 1

Filipinas 5

Vietnam 1