Carta 113 publicada a 14 fevereiro 2022
UMA MISSA JAMAIS PROIBIDA
A eleição de João Paulo II em 1978 marcou um ponto de viragem na tentativa de tomar de novo as rédeas sobre o rumo que estava a tomar o pós-concílio, ainda que de modo extremamente tímido*. A 18 de Novembro de 1978, um mês depois de sua eleição, por iniciativa do Cardeal Siri, João Paulo II recebia o arcebispo Lefebvre na presença do Cardeal Seper.
1981: O Cardeal Ratzinger toma em mãos a questão litúrgica
A mudança que se seguiu deveu-se em grande parte ao facto de João Paulo II ter chamado a Roma, em 1981, o Arcebispo de Munique, o Cardeal Ratzinger, para lhe confiar aquele que era o cargo de confiança por excelência nesses tempos de grande confusão doutrinal: o de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O Relatório sobre a Fé, que o cardeal publicou em 1985, expôs o seu pensamento no campo teológico e disciplinar, resumido pela palavra "restauração", que devia ser entendida - explicou-o claramente - num quadro conciliar e não com um propósito de “involutivo”. Em todo o caso, pelo menos não expressamente involutivo.
Já nas questões litúrgicas, existia claramente na mente do cardeal uma perspectiva de retorno a um estado anterior. Importa não esquecer que Joseph Ratzinger, ex-perito do Cardeal Frings, Arcebispo de Colónia, uma das figuras proeminentes da maioria conciliar, havia lançado o seu primeiro sinal de alarme em matéria litúrgica numa conferência em Münster, em 1966, onde era então professor, seguindo-se depois outro, nesse mesmo ano, em Bamberg, no Katholikentag (o encontro de católicos alemães organizado a cada dois anos). Atacou o “novo ritualismo” dos especialistas litúrgicos, que haviam substituído os velhos costumes pela fabricação de “formas” e “estruturas” suspeitas, entre as quais, a obrigatoriedade do “virado-para-o-povo”, por exemplo. Pela primeira vez na sua vida, o ex-especialista do grupo maioritário do Vaticano II via-se descrito como “conservador” (pelo Cardeal Döpfner). Nomeado professor da Escola Católica da Universidade de Tübingen no final de 1966, assistiu aí ao Maio de 68 à maneira alemã, ou seja, a marxização de uma universidade (Ernst Bloch era então a figura dominante no corpo docente), na qual a Escola Católica passara a seguir em grande parte a teologia da desmitologização de Bultmann.
Em 1969, aceitou o cargo de professor de teologia dogmática e história dos dogmas em Ratisbona, ao mesmo tempo que era nomeado membro da Comissão Teológica Internacional. Foi também em Ratisbona que se veio a tornar amigo do historiador da liturgia Klaus Gamber, que permanecera fiel à missa tradicional. Ali, nas margens do Danúbio, esperava-o um novo choque após o da primeira etapa da reforma e da revolução de 68: o completar-se da reviravolta litúrgica. É certo que muitos aspectos dessa reforma lhe convinham, mas a sua radicalidade parecia-lhe insustentável, escorado como estava neste seu juízo reprovador pelas longas conversas das caminhadas diárias com o seu colega Gamber. “Destruímos o antigo edifício para construir outro”, viria a escrever mais tarde.
Foi nesse momento que se cristalizou o pensamento complexo de Joseph Ratzinger sobre as coisas litúrgicas, o de um centrista fundamentalmente conciliar, mas atento à voz tradicionalista dos seus amigos da universidade, o Professor Klaus Gamber, e mais tardo o Professor Robert Spæmann e o Professor Heinz-Lothar Barth. Foi também em Ratisbona que, em 1977, foi nomeado por Paulo VI, cada vez mais assustado com "a fumaça de Satanás no interior da Igreja", para uma das sedes mais importantes da Alemanha, a de Munique e Freising. João Paulo II viria depois a tirá-lo de lá para o pôr à cabeça da Congregação para a Doutrina da Fé, em 25 de Novembro de 1981.
1982: a ab-rogação do antigo missal posta em questão
Todos se tinham já apercebido da impossibilidade de reduzir a importância a contestação à reforma, tanto doutrinal como litúrgica, por parte de todo um sector da Igreja, cuja figura mais proeminente era a de Mons. Lefebvre, ex-arcebispo de Dacar. João XXIII e Paulo VI, "príncipes esclarecidos", haviam presidido ao processo que punha fim ao modelo tridentino na Igreja Romana. Mas eis que, de repente, o espartilho disciplinar tridentino já não constringia ninguém, mas também não constringia os defensores de Trento, os tradicionalistas.
Não é irrelevante ter noção de que o próprio Annibale Bugnini, exilado como núncio em Teerão, havia enviado uma carta em 1976 ao Cardeal Villot, Secretário de Estado de Paulo VI, na qual propunha que, permanecendo ressalvada a obrigação de princípio da Missa de Paulo VI, a Missa de São Pio V pudesse ser celebrada, sob certas condições e em igrejas específicas, para grupos com dificuldades com o novo Ordo Missæ.
Foi precisamente o que Joseph Ratzinger propôs, uma vez em Roma. Logo em 16 de Novembro de 1982, organizou uma reunião interdicasterial no Palácio do Santo Ofício sobre a questão litúrgica e a questão lefebvrista, na qual participaram: o Cardeal Sebastiano Baggio, Prefeito da Congregação dos Bispos; o Cardeal William W. Baum, Arcebispo de Washington; o Cardeal Agostino Casaroli, Secretário de Estado; o Cardeal Silvio Oddi, Prefeito da Congregação do Clero; o Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; e Dom Giuseppe Casoria, Pró-Prefeito da Congregação para o Culto e os Sacramentos. Todos os participantes deste encontro afirmaram que, uma vez que «se podia duvidar da plena validade jurídica da ab-rogação do antigo missal», o «antigo» missal romano deveria ser «admitido pela Santa Sé em toda a Igreja para as missas celebradas em língua latina». Em 1982, ou seja, 25 anos antes do Summorum Pontificum!
1984: Quattuor abhinc annos
No entanto, foi preciso esperar até 1984 para que esta permissão ganhasse forma. Em 19 de abril de 1984, teve lugar uma nova reunião entre os Cardeais Casaroli, Ratzinger e Casoria.
Numa carta de 18 de março de 1984, o Cardeal Casaroli, Secretário de Estado, pedia ao Cardeal Casoria, Prefeito da Congregação para o Culto Divino, que preparasse um decreto nesse sentido, invocando como precedente a permissão concedida por Paulo VI para a Inglaterra e o País de Gales em 1971, precisando que «uma proibição absoluta [do missal anterior] não [poderia] ser justificada nem do ponto de vista teológico nem do ponto de vista litúrgico». Isto veio a resultar na carta circular Quattuor abhinc annos, da Congregação para o Culto Divino, de 3 de outubro de 1984, que concedia aos bispos diocesanos a faculdade de usar um indulto pelo qual os fiéis que o solicitassem pudessem beneficiar da missa celebrada segundo missal romano na sua edição típica de 1962.
O Cardeal Stickler revelaria que o Cardeal Ratzinger organizou ainda uma outra reunião com nove cardeais em 1986, para de novo perguntar se, na sua opinião, a missa tridentina havia sido ou não sido juridicamente ab-rogada: 8 em 9 consideraram que não, mas todos convieram unanimemente em que não se podia impedir um sacerdote de a rezar. Em 1986, ou seja, 21 anos antes do Summorum Pontificum!
Quatro anos depois, após a consagração por Mons. Lefebvre, sem mandato apostólico, de quatro bispos, Monsenhores de Galarreta, Tissier de Mallerais, Williamson e Fellay, a 30 de junho de 1988, era publicado um novo texto: o motu proprio Ecclesia Dei adflicta, de 2 de julho de 1988, em que se determinava que os sacerdotes do rito tradicional podiam criar institutos votados à liturgia tradicional. Além disso, constituía-se aí uma Pontifícia Comissão, a Comissão “Ecclesia Dei”, da qual haviam de depender esses institutos, e que também ficaria encarregue de regular as autorizações dadas pelos bispos para usar o missal tridentino nas respectivas dioceses.
A partir desse ano de 1988, foi-se tornando relativamente grande o número de prelados que começaram a celebrar ocasionalmente o Missal Tridentino, e alguns entre eles logo surgiram como uma espécie de protectores desse modo de celebração. Assim, para falar apenas de cardeais da Cúria, podemos evocar os cardeais Oddi, Palazzini, Stickler, e depois, o próprio Cardela Ratzinger, e ainda os Cardeais Medina, Castrillón, e mais tarde, os Cardeais Burke, Rodé, Ranjith, Cañizares, Cordes, Sarah. É de sublinhar muito especialmente que três deles, Medina, Cañizares e Sarah, foram prefeitos da Congregação para o Culto Divino.
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Seria ainda necessário esperar dezanove anos para se chegar à promulgação do motu proprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007. Sob a pressão duma contestação que não podia ser travada, e que agora já se estendia ao mais alto nível, passo a passo, o legislador acabava por reconhecer que se devia interpretar as prescrições do Missale Romanum de 1969 como não obrigatórias.
* Inspirámo-nos aqui no livro do Padre Claude Barthe, La messe de Vatican II. Dossier historique, Via Romana, 2018, e nas observações que dele decorrem.